Livres para roubar
O arrastão que vitimou turistas estrangeiros em hotel de luxo em Santa Teresa é resultado de uma renitente cultura de impunidade. A polícia do Rio soluciona menos casos do que a de outros estados e realiza menos prisões
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Na manhã da última segunda-feira (18), enquanto os jornais ainda exibiam as fotos de Pelé acendendo a pira olímpica na cerimônia de abertura dos Jogos Mundiais Militares no Engenhão, a festa do esporte ganhava um incômodo contraponto nos sites de notícias do Brasil e do exterior. Por volta das 3h20 da madrugada, um grupo de bandidos invadiu o luxuoso e cultuado Hotel Santa Teresa e roubou dinheiro, celulares, passaportes e objetos de valor de quinze hóspedes, quase todos estrangeiros, entre eles funcionários da fabricante de artigos esportivos Nike. Imediatamente, a notícia ribombou por nada menos que 100?000 páginas da internet. Em meio a registros que iam da fria descrição dos fatos a outros pontuados de ironia ? afinal, o roubo aconteceu em um momento em que o Rio de Janeiro recebe 6?000 militares de mais de uma centena de países ?, era impossível deixar de notar, ainda que disfarçada nas entrelinhas, uma pergunta inquietante. A cidade tem de fato condições de garantir que episódios semelhantes não voltarão a ocorrer quando estiver coalhada de turistas durante eventos muito maiores e mais complexos como a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016? Até mesmo os cariocas mais otimistas foram acometidos por essa desagradável dúvida.
Nos dois dias que se seguiram, a equipe da Delegacia Especial de Apoio ao Turismo (Deat) ouviu as vítimas, os funcionários do hotel e testemunhas que moram nos arredores, num total de 22 pessoas. Também localizou estacionado na Rua Uruguaiana, via movimentadíssima no Centro, o automóvel usado na fuga. No entanto, até quinta-feira (21), não havia nenhuma perspectiva de pôr as mãos nos marginais, nem mesmo no criminoso que participou do roubo de cara limpa, ou de outro comparsa, sobre o qual recai a suspeita de ter sido funcionário do hotel. A polícia preferiu se recolher ao silêncio e blindar as investigações, alegando motivos de segurança em decorrência dos inúmeros eventos esportivos programados durante a semana. ?Estamos fazendo tudo para resolver isso o mais rapidamente possível?, disse a delegada Renata Assis, responsável pela apuração do crime na Deat.
A maneira como as autoridades cariocas reagiram ao assalto segue a habitual estratégia de comprar um cadeado depois de a porta ter sido arrombada. Entre as medidas de praxe, o policiamento na área foi momentaneamente reforçado e cogita-se a instalação de uma nova unidade da Polícia Militar no bairro. Tudo isso é importante, mas a questão fundamental sempre fica relegada a um segundo plano nessas horas. O problema maior de uma ação ousada desse tipo não é o roubo em si, uma vez que qualquer metrópole do mundo, por mais desenvolvida que seja, sofre com casos de violência das mais diversas naturezas. O que causa maior preocupação, na verdade, é que os bandidos cariocas raramente são presos. E, quando são, passam pouco tempo na cadeia. Tal mecanismo acaba motivando esses e outros delinquentes a tentar a sorte em novos roubos.
Por aqui, o número de assaltos solucionados após uma investigação policial é tão insignificante que o Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão estadual respeitado por sua competência em produzir estatísticas sobre segurança, não dispõe de informação alguma a respeito. A Polícia Civil, que deveria fornecer tais dados, uma vez que é ela a instituição responsável pelas investigações, também não. No caso de crimes mais graves como assassinatos, o retrospecto é desalentador. Um levantamento recente feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público mostra que, dos inquéritos envolvendo homicídios ocorridos no país até dezembro de 2007 que ainda continuam abertos, 60% estão justamente no Rio, o campeão, com 60 000 casos sem solução. Para efeito de comparação, o segundo estado no ranking é Minas Gerais, com 13,5%.
Em um cenário assim, é natural que bandidos se sintam à vontade para agir, estimulados pela impunidade. Delegacias sucateadas, falta de infraestrutura e de preparo da polícia técnica para obtenção de provas e déficit de investigadores são apenas alguns dos elementos que entravam inquéritos e prejudicam a elucidação dos crimes. ?No fim das contas, só vão para a cadeia os criminosos pegos em flagrante?, observa o professor de direito da FGV Rio e ex-secretário nacional de Justiça Pedro Abramovay. ?Não temos a cultura da investigação. Faltam tecnologia e qualificação adequada.?
Embora não apresente uma relação direta de causa e efeito, o assalto no Hotel Santa Teresa reforça o discurso daqueles que acham o Rio incapaz de sediar uma Olimpíada com segurança. Afinal, casos de delitos contra turistas vêm se repetindo nos últimos tempos, alguns com alto grau de violência. Em agosto do ano passado, a cidade se viu em uma situação terrivelmente embaraçosa depois que um bando armado invadiu o hotel Intercontinental, em São Conrado. Trinta e cinco pessoas, entre hóspedes e funcionários, ficaram sob a mira dos fuzis e submetralhadoras dos bandoleiros. A situação foi controlada apenas com a chegada do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar. Tanto nesse caso quanto no de Santa Teresa, felizmente as vítimas saíram ilesas. Os danos para a imagem carioca, porém, foram devastadores, mesmo com todos os progressos ocorridos recentemente na área de segurança pública. ?Quando você faz mal ao turista, faz um mal ainda maior à cidade?, raciocina Alfredo Lopes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis no Rio (Abih-RJ).
Com a realização dos Jogos, a grande ambição dos governantes é tornar a cidade um importante destino turístico global. Até 2016, será necessário acrescentar mais 10?000 leitos aos atuais 30?000, uma exigência do Comitê Olímpico Internacional. Em cinco anos haverá um investimento de 3,5 bilhões de reais somente no setor hoteleiro, com a abertura de 36 empreendimentos de grande porte no estado, dezessete deles na capital. A Riotur estima que, até o fim da década, o número de turistas internacionais no Rio de Janeiro deverá passar de 1,6 milhão por ano para 2,3 milhões, um crescimento de quase 50%. O próprio Hotel Santa Teresa, aberto em 2008, era um símbolo desse futuro auspicioso, ao oferecer conforto e serviços de primeira em uma região pitoresca que encanta os estrangeiros ? 60% dos hóspedes vêm do exterior, como a cantora inglesa Amy Winehouse, que se hospedou por lá em janeiro. ?Nunca nos aconteceu nada parecido. Vamos reforçar os sistemas de segurança?, afirma o gerente da casa, Juan Sander. Espera-se que as autoridades também façam sua parte, começando por localizar ? e punir ? os responsáveis por esse crime que envergonhou a todos nós. Cadeia neles.