Reparação histórica: Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio tem turma de bolsistas
Dos 17 alunos do curso de formação psicanalítica, sete ingressaram por novo programa social/racial
Joice Caroline Pinheiro dos Santos é a primeira da sua família a dar atenção à saúde mental. O pai, Rui, técnico em mecânica industrial aposentado, precisou começar a trabalhar aos 9 anos. A mãe, Ivonete, assim como suas tias e avó, carregava lenha e lata d’água na cabeça, antes de se tornar professora. A realidade era de escassez em Pirapora, no Norte de Minas Gerais.
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“Meus ancestrais são negros. Saúde mental era algo que nem existia no vocabulário deles, que vêm de uma realidade em que lidar com as emoções e sentimentos era bobagem, porque o importante era pensar na sobrevivência. Nisso eu vejo também um forte impacto do racismo. O racismo desumaniza”, explica Joice, que se formou em psicologia e, aos 30 anos, é uma das novas bolsistas de formação psicanalítica pelo Programa Social/Racial oferecido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Dos 17 alunos que começaram as aulas em agosto, sete ingressaram na SBPRJ por meio da iniciativa. Isso significa isenção da mensalidade da Sociedade; gratuidade em seminários, cursos, jornadas, simpósios, reuniões e eventos com convidados estrangeiros promovidos pela instituição; e financiamento de outras taxas do processo de formação psicanalítica, que pode sair caro para o bolso da maioria dos brasileiros. Joice, por exemplo, faz análise pessoal três vezes por semana como parte da formação.
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Wania Cidade, mulher negra, ex-presidente da sociedade, coordena a Comissão de Estudos Críticos sobre Relações Raciais, Descolonização e Pensamento Afrodiaspórico, e participou da comissão que originou o programa de bolsas que hoje contempla Joice. A psicanalista conta que desde 2009 a instituição vinha recebendo intelectuais negras e negros em reuniões científicas, embora o debate fosse circunscrito a novembro, mês da Consciência Negra.
“Essas reuniões foram o embrião”, explica Wania, exemplificando a importância da presença de pessoas negras nos espaços de discussão e decisão.
Se o acesso à saúde mental ainda é restrito a pessoas brancas e elitizadas, não é por falta de presença negra na formação do conhecimento psicanalítico:
“A psicanálise entra no Brasil pelo entusiasmo e tenacidade do médico psiquiatra baiano e negro Juliano Moreira. Ele passou uma temporada na Alemanha, aprendeu o idioma e teve a oportunidade de ler os textos freudianos no original. Também são atribuídos a ele os primeiros estudos de psiquiatria em solo brasileiro, tendo lecionado sobre a matéria, assim como introduzido a obra freudiana no curso universitário de medicina e autorizado, em 1929, a abertura de dois consultórios de psicanálise no hospital psiquiátrico do qual, à época, era o diretor”, lembra Wania, lamentando o apagamento histórico de intelectuais negros como ele.
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Wania explica como a psicanálise brasileira, nascida em um hospital psiquiátrico sob os auspícios do pensamento inovador de Juliano Moreira, distanciou-se da população e, em especial, da população negra:
“Até os anos 80, a formação psicanalítica era facultada apenas aos médicos, o que contrariava o próprio pensamento do fundador da psicanálise, Sigmund Freud, que propunha que os leigos se aproximassem do novo saber. É sabido que o curso de medicina é um dos mais elitizados do país. A população branca ainda lidera o acesso à formação acadêmica, inacessível aos mais pobres, cuja maioria é de negros. Ou seja, embora tenha sido a presença intelectual e a mão de obra de homens e mulheres africanos que introduziram algumas tecnologias no país, os afrodescendentes não usufruíram dos bens implantados por seus ancestrais.”
Depois de Juliano Moreira, médicos da elite do Sul e do Sudeste foram para o exterior a fim de se tornarem psicanalistas. Foram eles que, ao regressarem ao Brasil, formaram os grupos de estudos que originaram as primeiras sociedades de psicanálise do Brasil, como a SBPRJ, fundada há mais de 60 anos e filiada à IPA, International Psychoanalytical Association.
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Diretor do Instituto de Formação Psicanalítica da SBPRJ, Ney Marinho sugere que a melhor autocrítica de profissionais da saúde mental para contribuírem com a luta contra a desigualdade social e racial é aderir ao projeto de inclusão:
“Esta foi uma das grandes propostas da psicanálise, como igualdade de sexos, direito das crianças, pacifismo, respeito às diferentes manifestações da sexualidade humana, entre outras. Assim, (psicanalistas, psicólogos e psiquiatras brancos e bem-sucedidos) estarão regando também a grande promessa de nossos pioneiros: a possibilidade de construirmos um mundo diferente. Não se trata de mera utopia, mas de uma outra forma de relacionamento humano, que consta de todos os escritos dos grandes psicanalistas. Não são conhecidos porque houve de fato uma censura branca à psicanálise como instrumento de crítica da cultura”, contextualiza o diretor.
Joyce comenta que participar do programa tem sido desafiador e intenso – e não ser a única pessoa negra na turma “rompe com a solidão tão comum entre negres nesses espaços”.
A previsão é de que conclua o primeiro módulo da formação em até dois anos: “Quero me aprofundar nos estudos da psicanálise, continuar a minha formação na SBPRJ, me envolvendo cada vez mais, junto do meu trabalho na clínica. É um desejo, também, ocupar mais espaços de discussões sobre temáticas raciais, sociais e de descolonização. Quem sabe, no futuro, também possa dar aula. Sinto que estou em estado de encantamento com tudo que venho aprendendo”, conta a futura psicanalista.
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* João Pedro Saramago, estudante de jornalismo da PUC-Rio, sob supervisão de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.