“Vivemos no Brasil uma crise humanitária”, diz infectologista

Para Rivaldo Venâncio, coordenador de pesquisas da Fiocruz, pandemia tem a gravidade do apartheid social brasileiro

Por Jorge Ferreira e Thamila Soares*
22 jun 2020, 13h38
Rivaldo Venâncio: no time da linha de frente da Fiocruz (Arquivo pessoal/Reprodução)
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Doutor em Medicina Tropical e coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de referência da Fundação Oswaldo Cruz, Rivaldo Venâncio é um dos pesquisadores na linha de frente do combate ao coronavírus. Como tantos colegas, pouco tem visto a família, os amigos. Viu de perto a Covid-19, vencida depois de muita tosse e muito sono. “Sentia fadiga. Dormia 16, 18 horas por dia”, lembra o infectologista. Nem o cansaço da doença nem a maratona diária contra o pesadelo, já superior a um milhão de contágios no país, ganham da inquietação com as incertezas da pandemia e com as precipitações que assombram resultados de pesquisas. Talvez a inquietação só fique atrás da veemência, e da lucidez, com que expõe a ferida: “Vivemos no Brasil uma crise humanitária, uma soma da crise sanitária com o nosso apartheid social”, diagnosticou, em entrevista a VEJA RIO, por telefone. O diagnóstico vem acompanhado do lembrete de que não basta desenvolver vacinas eficazes e seguras. É preciso torná-las “disponíveis ao conjunto da população”. Este acesso não deve se consumar em menos de um ano, prevê o pesquisador. Ainda assim, ele se diz otimista. Embora avalie que “ainda precisamos conhecer muito melhor a doença”, leva fé no legado dos estudos emergenciais para domar o danado do vírus nos próximos anos. Venâncio sabe que a ciência não cansa.

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Fora a maratona diária na Fiocruz, como o senhor tem vivido a pandemia?
Fiquei doente. Sarei. Estou bem, estou tranquilo. Antes (quando doente), eu só queria dormir. Foi assim uma semana. Dormia 16, 18 horas por dia. Costumo dormir cinco horas no máximo por noite. Sempre fui de dormir pouco. Fiquei apreensivo, embora eu não tenha desenvolvido a doença de forma grave. Os maiores incômodos foram a tosse, a dor muscular, a fadiga. Também perdi o paladar e o olfato. Mas não tive falta de ar, como tem sido observado. Isso mexe, claro, com a rotina de todo mundo. Não só da pessoa afetada, mas também da família.

O senhor integra uma das frentes mais importantes de combate ao coronavírus no país. Passados cinco meses, qual a sua avaliação da pandemia no Brasil?
Os meios de comunicação já mostravam, antes do coronavírus, unidades de saúde abarrotadas, sobretudo em regiões metropolitanas sem estrutura. Portanto, a crise sanitária é anterior ao vírus. Mas se agrava agora. Porque vivenciamos, além dela, uma crise econômica e uma crise social antiga. A Covid-19 agrava a situação, com a paralisia das atividades econômicas. Essas duas crises encontram um país com profundas desigualdades e o acordam para a existência de milhões de pessoas vivendo em sub-moradias. É um processo de cinco séculos relacionado ao modelo de desenvolvimento que gerou uma vergonhosa desigualdade social. Vivemos um apartheid social. Se juntarmos a crise sanitária com as crises econômica e social, constatamos uma verdadeira crise humanitária, com pessoas morrendo por falta de ar, sem acesso a oxigênio, sem acesso sequer a medidas básicas para aliviar a morte.

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Qual a maior dificuldade para vocês, pesquisadores, em meio à crise sem precedentes?
A maior dificuldade são as incertezas. Dúvidas geram inseguranças. Geram, muitas vezes, observações precipitadas sobre determinados resultados de pesquisa. Tudo isso é inquietante. Estamos diante de uma situação histórica peculiar. À exceção da gripe espanhola, em 1918, jamais vivenciamos tamanha dramaticidade. Um dos retratos desta singularidade são os impactos da pandemia nos profissionais de saúde. Nunca uma doença emergente acometeu e matou tantos assim num tempo tão curto.

A esperança vem justamente de profissionais como os pesquisadores em busca de tratamentos e vacinas. Como andam as expectativas neste sentido?
Sou extremamente otimista. O bonito, o apaixonante da pesquisa científica, é que cada momento deixa a sua contribuição histórica. Tudo que está sendo desenvolvido, conhecido e desvendado em relação ao coronavírus em 2020 servirá de base para que futuras gerações de pesquisadores, anos, décadas depois, continuem desenvolvendo e melhorando as observações feitas nessa fase emergencial da doença.

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O trabalho em casa é uma das mudanças impostas pela pandemia. As pesquisas científicas podem se beneficiar do home office?
Algumas práticas são favorecidas com o home office, como a utilização de bancos de dados de análise, as projeções de cenário no país, a elaboração dos textos para publicar os resultados. Tudo isso pode ser feito em casa. Mas muitas atividades de pesquisa não podem desenvolvidas em home office. Aliás, é importante controlar os riscos associados a uma parte dos profissionais envolvidos nesses processos. Por exemplo, muitos deles, para chegarem ao local da pesquisa, seja uma instituição como a Fiocruz, seja uma universidade pública ou privada, pegam transportes coletivos todos os dias. Esses ambientes, muitas vezes lotados, aumentam a chance de transmissão do vírus.

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Falando nisso, como a contaminação é controlada nos ambientes de pesquisa?
As precauções são, na essência, as recomendadas para todas as pessoas, como evitar veículos de transporte público cheios. Várias instituições têm uma rede de transporte próprio, para levar esses trabalhadores e reduzir o risco de contágio. Adotamos todos os cuidados recomendamos a qualquer cidadão, da higiene rigorosa ao distanciamento social. Ainda assim, por vezes nós também adoecemos. Aconteceu comigo, provavelmente numa ida ao supermercado.

Em que fase está a produção científica na guerra contra o coronavírus?
Se olharmos para frente, onde queremos chegar, estamos ainda longe do ideal. Mas, se olharmos onde estávamos há dois, três meses, avançamos muito nas pesquisas relacionadas ao vírus. Um dos exemplos é o kit para o diagnóstico da infecção e da doença, já disponível na rede pública [de Saúde] do país inteiro. Mas precisamos entender muito melhor essa doença. Precisamos descobrir um tratamento ideal, que ainda não temos. Precisamos desenvolver uma vacina eficaz, segura e acessível para toda a população, não só para determinados segmentos. Dificilmente teremos uma vacina acessível para todos em menos de um ano.

Qual a maior pedra no caminho dos tratamentos e vacinas?
Precisamos conhecer melhor o que chamamos de fisiopatogenia da doença, ou seja, o espectro clínico todo da doença. Compreender melhor a dinâmica da doença no ser humano: no nível individual e no coletivo, isto é, como ela se espalha numa comunidade.

Como as pesquisas podem conter o vírus em cidades mais populosas, como o Rio?
O que oferecemos hoje à população, para reduzir o número de casos, é um conhecimento acumulado sobre os mecanismos de transmissão do vírus. Por exemplo, sabemos que as gotículas que carregam o vírus são em parte contidas com o uso de máscara. Isso vale tanto para quem emite quanto para quem pode receber as gotículas. Sabemos também que o afastamento físico, em torno de dois metros de distância, reduz ainda mais a chance de transmissão. A ciência continua a recomendar o afastamento físico, que vai se diluir nas próximas semanas, nos próximos meses. A medida segue importante para controlar o impacto sobre o sistema de saúde, de maneira que não precisemos ficar com 200, 300 pessoas aguardando um leito de UTI e que, quando conseguem, já estão numa fase em que pouco, ou quase nada, pode ser feito para salvá-las.

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O isolamento social tem regredido em várias cidades, inclusive no Rio, apesar de ressalvas das autoridades sanitárias. Como calibrar esta medida?
A adesão social é importante. Mas também é importante refletir sobre os diversos Brasis, os diversos Rios que temos. A camada social com melhores condições de vida pode aderir ao isolamento sem maiores problemas. Mas temos de olhar para os milhões de desempregados e subempregados que precisam sair de casa, porque não foram criadas as condições para que mantivessem o afastamento social. Precisamos ter essa consciência. Não adianta pensar em lockdown, porque dificilmente um confinamento rigoroso, radical, vai funcionar na dimensão que gostaríamos que funcionasse.

Qual seria o melhor ajuste do isolamento?
A medida, como eu disse, tem que contemplar os vários Brasis. Niterói, por exemplo, obteve resultados positivos porque o lockdown foi acompanhado de iniciativas de proteção social. Não há medida que possa ser uniforme para países do tamanho do Brasil. Enquanto uma região do país está num clima frio e seco, outros lugares, como o Rio, têm condições climáticas e demográficas bem diferentes.

O que tem funcionado na jornada contra a pandemia por aqui?
Nesses quatro meses, ampliamos a rede de assistência, mesmo com algum atraso. Isso é importante. Destaco a quantidade de leitos abertos em hospitais de campanha, inclusive leitos de terapia intensiva, ou em hospitais que foram construídos em um curtíssimo tempo, como o da Fundação Oswaldo Cruz. É suficiente o que está sendo feito até agora? Ao que tudo indica, ainda não. Mas demos importantes passos. Também foram acertados o afastamento físico e a suspensão das atividades presenciais nas escolas. Outra coisa muito importante é o aprimoramento dos indicadores que permitem fazer as estimativas, ou seja, as projeções de como caminha e para onde vai a epidemia. O diagnóstico laboratorial também melhorou. São conquistas que temos de ressaltar.

A recomendação para ficar em casa se estende aos doentes com sintomas leves da Covid-19. O que o senhor orienta a essas pessoas?
Bem, reforço duas recomendações: procurar a unidade de Saúde e não se medicar por conta própria. Se a febre não vai embora, se a tosse não vai embora, tem que procurar o atendimento especializado. O repouso e a hidratação são fundamentais, mas eu insisto: é muito importante não partir para a automedicação. Ela representa um risco não só em relação à Covid-19, mas a qualquer outra doença, sobretudo as doenças sazonais que surgem na forma de emergências sanitárias. Um medicamento que funciona numa pessoa não necessariamente funciona noutra pessoa, e ainda pode fazer mal se ela tiver uma contraindicação ao remédio.

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Que remédios podem evitar que a instabilidade política prejudique os esforços da ciência para debelar a epidemia?
Estamos vivendo um ambiente de Fla-Flu. Parte significativa da população faz composições pré-estabelecidas contra ou a favor alguma medida. Isso não nos levará a lugar algum. A gravidade da epidemia recomenda que nós, cidadãos e cidadãs que preservamos a vida e queremos um futuro melhor, sentemos em volta da mesa junto aos poderes públicos, à sociedade civil, às organizações não-governamentais, às associações comunitárias, para analisar a realidade de forma integrada, diariamente, e chegarmos a um consenso, ou o mais próximo disso.

Mudando de assunto, quando a pandemia atingiu o Brasil, chegou-se a comparar a taxa de mortalidade da Covid-19 com a da dengue. Há semelhanças?
Não, de forma nenhuma. Poucas doenças matam tantas pessoas em tão pouco tempo como a Covid-19. Talvez a Aids, no auge dela, mais do que a H1N1. No caso específico do Brasil, não há parâmetro de comparação em número de mortes, em gravidade, da Covid-19 com a dengue. Gravidade é entendida, neste sentido, como sequela, como necessidade de internação em Unidade de Terapia Intensiva. Nenhuma das chamadas arboviroses, como dengue, zika e chikungunya, têm algo parecido com o coronavírus. A Covid-19 veio se somar a outros problemas de saúde que já tínhamos. Ela não está substituindo, e sim se juntando a outras enfermidades que a gente enfrentava.

Quando a crise passar, o que o senhor mais gostaria de fazer?
Passear, né? Rever os amigos, os familiares. Eu até tenho conversado muito pelo telefone, diariamente, mas não é a mesma coisa. Não estamos, de fato, juntos. Esse seria o meu maior desejo quando tudo voltasse ao normal. Sair, ver gente, encontrar as pessoas.

Jorge Ferreira e Thamila Soares*, estudantes de comunicação, sob supervisão dos professores da universidade e revisão de Veja Rio

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