Tragédia no Sul acelera corrida contra o (mau) tempo no Rio
Projeto que estabelece medidas a serem tomadas com base no conceito de cidade-esponja aguarda sanção do prefeito, e COR e defesa civil se armam para combate
A tragédia que deixou o Rio Grande do Sul imerso em água, com 94% das cidades atingidas e pelos menos 170 vidas ceifadas — catástrofe climática sem precedentes no país —, acendeu um alerta geral. O aquecimento global e suas consequências têm se revelado cada vez mais devastadores, o que impõe ao poder público e à sociedade a inadiável missão de pôr o pé no acelerador e implantar medidas que previnam perdas humanas e evitem um cenário tão desolador. No Rio, são cada vez mais frequentes e severas as ondas de calor, como a que deixou recentemente o estado sob temperaturas 5 graus acima do normal, sem precipitações por quase vinte dias. O fenômeno é mais um inequívoco sinal do que os próximos tempos nos reservam. E a preocupação não gira apenas em torno do verão, estação tradicionalmente chuvosa, quando são comuns os deslizamentos, mas se estende ao dia a dia de um território particularmente vulnerável a desastres naturais associados a eventos extremos, devido à sua geografia, espremida entre mar e montanha. “Passamos do aquecimento global para a ebulição global. Não tem volta, e precisamos correr para nos preparar”, enfatiza Luize Sampaio, coordenadora da Casa Fluminense, organização que se movimenta em prol de políticas que ensejem um desenvolvimento sustentável da região metropolitana.
O estado fornece dados que reafirmam a necessidade de agir já. Só entre 2020 e 2023, foram contabilizados 140 mortos, 690 feridos, 8 813 desabrigados, 145 077 desalojados e pelo menos 3 milhões de cidadãos afetados por eventos climáticos variados. A questão essencial é que, mesmo sob esse raio de devastação, não se avistam mudanças estruturais que possam proteger o Rio da fúria da natureza, e o perigo é iminente. Hoje, 1,1 milhão de casas dos 22 municípios da área metropolitana se encontram em zonas de elevado risco para inundações — na cidade do Rio, são 438 000 residências em tal situação, 15% do total de moradias da capital. Mesmo diante desse quadro, apenas a metrópole possui um Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o que levou a organização civil a cobrar do Ministério Público estadual a criação de uma secretaria de emergência climática, com orçamento e corpo técnico próprios para todo o Rio. “O clima não se restringe ao meio ambiente, envolve questões complexas, como as da habitação, por exemplo”, defende Luize, que dá à discussão seu real contorno: “Chuva não mata, o que mata é a omissão”, resume.
Não é de hoje que o solo fluminense pena com manifestações extremas do clima. Lá atrás, o historiador Baltazar Lisboa relatou que, em 14 de abril de 1756, ocorreu “tão grande e copiosa chuva, precedida de veementes concussões de ar e espantosos furacões por três dias sem interrupção (…)” e que “desde então as águas cresceram de tal maneira que inundaram a Rua dos Ourives (atual Miguel Couto, no Centro) e entraram pelas casas adentro, por não caberem mais nas valas”. Os moradores foram então obrigados a se refugiar nas igrejas. Apesar de os temporais fazerem parte de infelizes capítulos da história do Rio, o que se percebe agora é que eles vêm se repetindo em intervalos menores. Segundo dados do Centro de Operações Rio (COR), de 1931 a 1996, havia o registro de um evento climático extremo a cada seis anos. Mais recentemente, entre 1997 e 2010, a regularidade caiu à metade, para três anos, e só piora. “De lá para cá, é um por ano, e com maiores índices de chuva”, observa o chefe-executivo do COR, Marcus Belchior. Em janeiro, o Rio acumulou o maior volume para o mês desde 1997, ano do início da série computada pelo Alerta Rio. Foram 348,9 mm de precipitação, superando a média histórica para o mês, de 161,1 mm.
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Certas regiões tradicionalmente sofrem mais, em geral por se situarem abaixo do nível do mar. Entre elas estão a Baixada de Jacarepaguá, as Vargens Grande e Pequena e o sistema lagunar da Zona Oeste. Não por acaso, o Rio figura entre as dez cidades costeiras do mundo que podem ver áreas submersas até o fim do século se o planeta seguir aumentando as emissões de gases de efeito estufa. A estimativa consta em um estudo conduzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em parceria com a agência Climate Impact Lab, em 2023. Mais do que tentar salvar as casas e o comércio quando as enchentes dão trégua, é vital achar soluções para blindar as cidades contra os alagamentos, objeto de investigação científica mundo afora. Uma das bem-sucedidas iniciativas é o conceito de cidade-esponja (leia mais abaixo), concebido pelo arquiteto, urbanista e paisagista chinês Kongjian Yu. Ele está à frente de diversos projetos voltados para a absorção das águas pelos lençóis freáticos, incluindo a criação de parques alagáveis e de pavimentação porosa que facilitem a drenagem em metrópoles como Nova York e Berlim.
No Rio, o projeto de lei 1928/2023, que estabelece medidas baseadas justamente nesse modelo, já foi aprovado na Câmara Municipal e está na mesa do prefeito. Se sancionado, o texto não torna esse tipo de obra obrigatória, mas, de acordo com o vereador William Siri (PSOL), um dos autores do projeto, aponta um caminho para quem está com a caneta na mão. “Precisamos de um conglomerado de leis para enfrentar os desafios climáticos”, defende o vereador, presidente da Comissão Especial de Emergência Climática e Justiça Socioambiental, criada em 2022. “No futuro, se tivermos seca, usamos essa água absorvida para beber”, afirma ele, sinalizando para outro gargalo ambiental que todos sentem na pele — o das ondas de calor. O Rio já conta, felizmente, com os alertas gerados pelo COR, QG de tomada de decisões, onde um exército de 500 profissionais trabalha 24 horas por dia de olho no maior telão do gênero da América Latina, monitorando imagens geradas por mais de 3 500 câmeras espalhadas pela cidade, assim como por dois radares meteorológicos de última geração.
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O atual desafio no COR é adicionar a inteligência artificial na confecção de diagnósticos cada vez mais precisos, uma meta para os próximos três anos. “Hoje, o que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais consegue fazer é emitir alertas de tempestades”, explica a cientista da computação Mariza Ferro, que conta com o apoio do Instituto Serrapilheira para desenvolver um modelo matemático de now casting, previsão do tempo com até seis horas de antecedência, que permita determinar quando, quanto e onde exatamente vai chover. Com base em tais informações, será possível tomar as providências apropriadas à realidade de cada região ou bairro. Entre elas é o socorro às vítimas, um problema principalmente nos municípios do interior. “Em alguns deles, a Defesa Civil consiste em um coordenador, uma mesa, e só”, conta o secretário e comandante-geral do Corpo de Bombeiros do estado, coronel Leandro Monteiro.
Acostumado a enviar experientes equipes para auxiliar em resgates, inclusive para além de nossas divisas (ao Rio Grande do Sul, foram deslocados noventa homens e mulheres), Monteiro destaca que o estado vem se equipando com um moderno maquinário. Isso abrange retroescavadeiras para remover destroços, além de quarenta viaturas recém-chegadas da Espanha, um avião de resgate e onze drones com câmeras térmicas, visão noturna e reconhecimento facial, o que facilita a identificação de crianças desaparecidas. “A gente tem que se adaptar e estar pronto para entrar em ação a qualquer momento”, ressalta Monteiro. Em maio, nove cidades na Baixada Fluminense, na Região Serrana e na Costa Verde, em geral as mais castigadas pelo aguaceiro, foram incluídas em um plano-piloto para implementar estratégias para evitar tragédias climáticas — parte do projeto estadual Rio Inclusivo e Sustentável, em parceria com a ONU Habitat, que conta com aporte estadual de 1,3 milhão de dólares. Tudo para encarar os novos — e mais imprevisíveis — tempos.