Museus, ateliês e bares renovam entorno da Praça da Harmonia, na Gamboa
No coração do Rio, o lugar centenário deixou seu passado de abandono, passou por reformas e virou um efervescente polo cultural
Bem no coração do Rio, no bairro da Gamboa, um pequeno largo de ares bucólicos vem fazendo jus ao nome — a Praça da Harmonia —, um cartão-postal que se integra perfeitamente ao cenário. Depois de um conjunto recente de iniciativas, o lugar deixou seu passado de abandono para virar um animado destino para aqueles que buscam opções culturais e, ao mesmo tempo, não querem perder um bom agito. Quem circula por lá logo percebe as mudanças. A região próxima do Porto do Rio passou a receber muito mais gente e ganhou uma recauchutada após uma série de obras, capitaneadas pelo Instituto Inclusartiz, da mecenas Frances Reynolds — que, aliás, abriu por ali, no fim de 2021, a sede do seu centro cultural. “Foi o nome do local, harmonia, que tem tudo a ver com a minha filosofia, que me influenciou a criar raízes na área”, conta a argentina radicada no Rio há 25 anos, figura das mais atuantes na cena nacional das artes plásticas.
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Por trás da porta amarela da fachada tombada, o prédio do Inclusartiz, que antes abrigava uma fábrica de tecidos, agora traz exposições, ateliês de arte e, em breve, vai inaugurar salas de oficinas. Inicialmente, a chegada do instituto à região veio acompanhada de certa desconfiança dos vizinhos. “Qual o seu intuito aqui?”, questionava uma mensagem escrita na calçada após o início das obras no imóvel. A resposta — criar um centro cultural que dá vida a este pedaço da cidade e valoriza seus moradores — veio na prática. Para reformar o prédio, todos os funcionários, bem como os insumos, foram contratados localmente. A primeira grande exposição, Gamboa: Nossos Caminhos Não Se Cruzaram por Acaso, exibiu no ano passado 25 artistas e coletivos ligados à Zona Portuária, do pintor Heitor dos Prazeres a contemporâneos como Mãe Celina de Xangô. “O objetivo era ultrapassar as paredes do instituto”, explica o diretor-executivo Cristiano Vasconcelos, que acompanhou de perto as reformas tocadas em parceria com o programa Revitaliza Rio, da prefeitura.
A revitalização deu cara nova ao icônico coreto da praça, agora limpo e com as tintas retocadas. Palco dos sambas que ocorrem por lá uma vez por mês, sob o comando do tradicional Cordão do Prata Preta, originário da região, a quadra esportiva também foi repaginada, bem como o mobiliário urbano. A iluminação está em dia, os brinquedos quebrados do parquinho foram substituídos e, em mutirão com as crianças da ONG Ação Gamboa, foram plantadas mudas nos canteiros. “Só agora está dando para voltar a frequentar a praça”, diz o empresário Rodrigo de Albuquerque, que mora na vizinhança desde a infância, durante um passeio com a filha Flora, de 2 anos. E, num ciclo virtuoso de renascimento urbano, os ambulantes, antes restritos à noite nos fins de semana, começam, pouco a pouco, a ocupar com mais frequência o espaço. “Isto aqui está virando a nova Lapa”, celebra Julio Cesar Nicolau, residente de Caxias, que bate ponto diariamente na área com uma barraquinha de açaí “de verdade”, plantado e colhido por ele.
O comerciante não é o único que enxerga traços em comum entre o bairro carioca boêmio por excelência e a região da Harmonia. Alguns veem até vantagens nesse naco do Rio em franca transformação. “Enquanto a Lapa fica cada vez mais cara e violenta, aqui é seguro, aconchegante e menos turístico”, avalia Jorge de Andrade, há vinte anos dono de um bar que leva seu nome. Segundo ele, espaços culturais ajudaram a despertar a atenção do público que hoje brota por ali, principalmente entre quinta e domingo, e a colocar a área sob os holofotes — ela acabou um pouco mais escondida quando foram retiradas as linhas de ônibus para dar lugar aos trilhos do VLT. Em um raio de não muitos quilômetros estão o Museu da História e Cultura Afro-Brasileira, o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos e o Espaço Malungo, além de inúmeras galerias e ateliês (veja abaixo), muitos movidos por artistas que moram no entorno.
Desde a derrubada do elevado da perimetral, em 2013, na primeira gestão do prefeito Eduardo Paes, a Zona Portuária vem passando por uma transformação. A inauguração do Museu de Arte do Rio, no mesmo ano, e do Museu do Amanhã, em 2015, é uma amostra potente de como a região, que testemunha ainda o aparecimento de complexos empresariais, tem se remodelado. O corredor de painéis artísticos nos armazéns — incluindo o maior grafite do mundo, Etnias, do paulistano Eduardo Kobra — acrescenta um toque especial ao conjunto. “Essa parte aqui de dentro tinha ficado muito esquecida”, lembra Cristiane de Souza, a Cris, dona do Bar Delas, fenômeno da noite carioca. O local compõe o roteiro noturno de muitos cariocas, especialmente depois da parceria com os artistas do projeto Lanchonete, Lanchonete, que, em 2018, se instalou na calçada da frente. Desde então, o point ferve de quinta a domingo até altas horas, registrando a frequência de uma turma conhecida, como Bruna Linzmeyer e Camila Pitanga. “Acham estranho eu deixar ambulantes na porta, mas quero que todo mundo da área leve o pão para casa”, justifica Cris.
Historicamente, essa não é a primeira grande virada na Praça da Harmonia. No século XIX, existia ali um mercado para atender parte da grande demanda do Mercado Municipal da Praça XV. Com a fraca movimentação, o prédio foi virando um cortiço, que acabou destruído por um incêndio. Na gestão de Pereira Passos, a área seria reurbanizada, dando origem ao largo. A imponente fachada de tijolinhos, que até hoje permanece por lá e chama atenção de quem passa, foi a primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil, inaugurada em 1887. Agora, o Moinho Fluminense, que toma quase todo o quarteirão, pertence a um fundo de investimentos estrangeiro, que tinha planos de erguer um shopping ali. “Encontrei um dos donos em um evento fora do Brasil e expliquei que a ideia não tinha nada a ver com o lugar, e ele parou as obras”, diz a VEJA RIO Frances Reynolds, direto de Madri, onde estava acompanhando a abertura da mostra de Maxwell Alexandre, artista lançado em uma residência do Inclusartiz. Na conversa, ela aproveitou para pôr à mesa a ideia de fazer do prédio uma universidade técnica. Seriam mais luzes a essa área em fase de renascimento.
UMA VOLTA PELA GAMBOA
O entorno da Praça da Harmonia tem atrativos para todos os públicos
1- Mississippi Delta Blues Bar. A primeira casa temática dedicada exclusivamente ao estilo musical no Rio é inspirada nos famosos juke joints americanos, bares de fora do circuito turístico. Rua Pedro Ernesto, 89. Terça, quarta, quinta, sexta e sábado, 18h30 à 1h30. Reservas pelo Instagram @msdeltarj.
2- Muhcab. Com exposições fixas e temporárias, o museu conta a história da região que testemunhou o maior desembarque de africanos escravizados no mundo e de importantes marcos de afirmação negra no Brasil. Rua Pedro Ernesto, 80. Quarta a sábado, 10h às 17h. Grátis.
3- Ateliê Sanitário. Espaço autônomo de formação, trabalho e convivência, gerido coletivamente por um grupo de artistas, curadores e pesquisadores que promovem exposições. Rua Pedro Ernesto, 56. Visitação com agendamento via Instagram @ateliersanitario ou ateliersanitario.residencias@gmail.com
4- Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. Criado a partir da descoberta de sítios arqueológicos (cemitérios de escravizados e indígenas) no subsolo do espaço, apresenta mostra permanente em seu museu memorial. Rua Pedro Ernesto, 32-34. Terça a sexta, 10h às 16h; sábado, 10h às 13h. R$ 20,00 (grátis às terças).
5- Lanchonete, Lanchonete. Associação cultural sem fins lucrativos que tem como missão apoiar o desenvolvimento de crianças, adolescentes e mulheres residentes em ocupações da região com atividades culturais. Rua Pedro Ernesto, 16. Programação no https://www.lanchonetelanchonete.com.
6- Instituto Inclusartiz. Apoia o processo de formação de artistas, por meio de residências, além de exibir exposições. Atualmente está em cartaz a exposição Da Avenida à Harmonia, sobre o Carnaval no Centro do Rio. Rua Sacadura Cabral, 333. Terça a domingo, 11h às 18h. Grátis.
7- Bar Delas. Conhecido pela administração feminista e pela diversidade de público, o espaço tocado por Cristiane de Souza virou fervo na noite carioca, com pagode às quintas e DJ às sextas e aos sábados. Rua Pedro Ernesto, 5. Programação no Instagram @bar_dellas.
8- Galeria Metara. Mudou-se de Ipanema para um prédio de três andares, com molduraria e galeria de mais de 5 000 gravuras e pôsteres. Representa artistas como Rogério Camacho, Susi Sielski Cantarino e Xico Chaves. Rua Sacadura Cabral, 264, ☎ 2537-3854. Segunda a sexta, 9h às 18h.
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