A vida como ela é
A produtora do grupo AfroReggae lança dois programas que penetram nos bastidores da Polícia Militar e das favelas cariocas
Em novembro de 2011, o Brasil acompanhou pela TV a retomada do Complexo do Alemão, na mais delicada operação dentro do programa de pacificação das favelas cariocas. Em tempo real, os telespectadores puderam ver a fuga dos bandidos por uma estrada de terra na Serra da Misericórdia, com alguns deles sendo alvejados pelo caminho. Nas extremidades do confronto estavam a cabo Flavia Louzada, lotada no Batalhão da Maré, e Juscelino Vitorino, à época um dos gerentes do tráfico no local. Menos de dois anos depois, ambos agora se encontram do mesmo lado, ou quase isso, separados apenas por uma claquete. Juscelino largou a vida bandida e tornou-se funcionário do Grupo Cultural AfroReggae. Ele atua como câmera no programa Papo de Polícia, um híbrido de atração policial e reality show produzido pela ONG. Com estreia prevista para 15 de abril no canal pago Multishow, a terceira temporada da série tem como protagonista Flavia Louzada, que relata seu agitado dia a dia na corporação. “As pessoas vão poder ver as situações complicadas por que passa o policial”, diz ela, de 32 anos, que viveu uma tragédia aos 11. Sua mãe foi assassinada por um aluno na porta da escola onde dava aula, episódio que acabou por despertar na menina o desejo de virar uma agente da lei. “Meu grande sonho é entrar para o Bope”, conta.
O reality conduzido pela cabo da PM é uma das atrações da fornada do AfroReggae que entrarão no ar nesta temporada. Outra grande aposta é Paixão Bandida, com estreia marcada para o dia 25 deste mês no GNT. Em tom de documentário, a série retrata a história de amor de quatro mulheres envolvidas com marginais. Uma delas é Daniela Pereira, 35 anos, que na juventude, quando morava em Copacabana, se apaixonou por um traficante. Eles se casaram e tiveram um filho, concebido no período em que o marido estava na cadeia. Tempos depois, a própria Daniela também seria presa, acusada de formação de quadrilha e extorsão. Cumpriu pena no presídio Talavera Bruce, onde foi gravado seu episódio da atração, que será veiculada por uma emissora cuja grade se caracteriza por programas de moda, beleza, comportamento e gastronomia. “Paixão Bandida aborda, acima de tudo, o amor”, afirma Daniela Mignani, diretora do GNT. “Dificilmente teríamos acesso a personagens e histórias tão interessantes se não fossem o AfroReggae e o trânsito que eles têm com esse pessoal.”
Os programas de TV são apenas um dos ramos de atuação do AfroReggae, entidade de cunho social que surgiu há vinte anos em Vigário Geral, após uma chacina ocorrida naquela favela. Com foco nas oficinas artísticas e nos cursos de formação profissional, a ONG conta com 350 funcionários, parte deles ex-criminosos em processo de reintegração na sociedade. O tentáculo audiovisual da entidade está em franca expansão. Localizada na cobertura de um prédio comercial na Lapa, a produtora dispõe de equipamento próprio, avaliado em 300?000 reais, com destaque para as três ilhas de edição e a câmera profissional. Antes de adquirir o material, em 2011, era preciso alugar tudo. Devido ao alto custo da diária de locação, o cronograma de filmagem nunca podia ser adiado. Assim, determinados registros foram colhidos em situação extrema, como a entrevista com um gerente de boca de fumo feita durante uma operação policial em Vigário Geral, em que ecoa um tiroteio ao fundo. “A audiência sobe quando adiciono risco de vida. Isso virou uma marca nossa”, afirma José Junior, coordenador executivo do AfroReggae, que aponta outra peculiaridade da equipe: “A galera toda, sem exceção, é de favela”.
Nos últimos tempos, filmes de enredo policial e os chamados favela movies foram sucesso de público, como comprovam Cidade de Deus e Tropa de Elite 1 e 2. É exatamente esse filão que a produtora busca explorar, mas com uma diferença acentuada: o choque de realidade à narrativa. Lançado há seis anos, o Conexões Urbanas, cuja sexta temporada estreia em setembro no Multishow, abriu as portas em âmbito nacional para a temática crua da vida nos morros. Sua pauta contemplava um amplo arco de assuntos: da violência na colombiana Medellín a uma reportagem de teor ecológico na Floresta Amazônica. Exibidas em horário nobre e emplacando ano após ano, as atrações do AfroReggae, naturalmente, dão novas crias. Um dos projetos em andamento é o Zona Neutra, programa de debate que começa a ser gravado ainda este mês, no Morro do Cantagalo. Outro é o documentário Novas Brasileiras, sobre o universo dos travestis. “Vamos aonde ninguém vai”, orgulha-se José Junior, habituado a pisar em terrenos minados.