Um espírito baixou em mim
Clonar astros da música brasileira com incrível fidelidade, como fazem no palco os intérpretes de Elis Regina e Cazuza, exige alta dose de entrega, talento e pesquisa
Quando se anunciou a produção de um musical sobre Elis Regina (1945-1982), os mais desconfiados duvidaram que houvesse uma atriz com talento suficiente para encarnar uma das cantoras de personalidade mais marcante da MPB. O ceticismo ficou um tom acima quando a escolha recaiu sobre uma baiana de cabeleira ruiva e olhos azuis, características inversas às da personagem, uma gaúcha de olhos e cabelos turvos. No entanto, após a estreia de Elis, a Musical, em novembro, as incertezas se dissiparam graças à interpretação arrebatadora de Laila Garin, uma atriz de 35 anos até então desconhecida do grande público. A montagem, em cartaz no Teatro Oi Casa Grande, não é um caso isolado de mimetismo exibido nos palcos cariocas. Impressiona também a verossimilhança de Emilio Dantas na pele de Cazuza (1958-1990), eminência do rock brasileiro dos anos 80 que é retratada em uma peça no Theatro Net Rio, que após breve interrupção teve sua temporada retomada no último dia 2. Tanto Laila quanto Emilio rechaçam qualquer explicação sobrenatural para a imitação tão convincente. “Dizem que a gente incorpora um espírito, mas, por trás disso, na verdade, há uma intensa preparação”, afirma Dantas, 31 anos.
Atribuir o êxito a uma providência mediúnica seria menosprezar todo o trabalho da dupla, que passou por um exaustivo processo para viver os tipos em cena. Para tanto, o mundaréu da internet foi uma fonte valiosa de pesquisa. Convidado pelo diretor João Fonseca a participar das audições de Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, o Musical, Dantas selecionou uma série de vídeos do artista no YouTube, desde entrevistas até o inesquecível show que o cantor fez à frente do Barão Vermelho na primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Com tamanho esforço, e boa dose de talento, foi escolhido entre mais de 100 candidatos que fizeram o teste para o papel. A partir de então, aprofundou-se ainda mais no tema. Prosseguiu com a imersão na rede, ouviu discos, decorou canções e leu Só as Mães São Felizes, livro em que a mãe do falecido astro, Lucinha Araújo, fala da relação com o filho. “Cabe ao ator mergulhar no universo do retratado não com essa coisa de sentimento, mas com inteligência visual e auditiva”, receita Claudio Botelho, respeitado diretor de musicais. “É ver e ouvir muitas e muitas vezes o personagem e tentar entender onde está o detalhe, a marca, o que nos traz a pessoa real”, completa ele, com a experiência de quem, ao lado do parceiro Charles Möeller, fez a atriz Claudia Netto materializar o mito Judy Garland em Além do Arco-Íris (2011), um desempenho que lhe valeu loas do próprio autor do espetáculo, o inglês Peter Quilter.
Por carimbar a primeira impressão, a aparência é decisiva para persuadir a plateia, mas não o único ponto-chave. Na linha dos musicais-tributo, em voga na agenda cultural carioca, um predicado fundamental para o protagonista é a analogia vocal com o homenageado. Nessa área técnica, o maior desafio para Dantas foi equalizar-se ao tom de Cazuza. No caso de Laila, sua formação em canto lírico foi um trunfo para que encontrasse o registro de Elis, mais grave do que o seu. “Preciso cuidar da voz e aquecê-la muito bem antes de entrar em cena. Aos sábados, quando faço duas sessões, termino exausta”, diz. Na última etapa do processo de transmutação entram no jogo os profissionais responsáveis pelo figurino e pelo visagismo, técnica que se propõe a mudar o visual da pessoa por meio da maquiagem e do corte do cabelo. Laila teve o seu picotado para que a peruca curta lhe coubesse melhor, e ainda precisa usar em cena incômodas lentes de contato escuras sobre os olhos azuis. Com nada menos do que doze tatuagens espalhadas pelo corpo, Dantas se vê obrigado a cobrir com maquiagem aquelas que não ficam escondidas sob a roupa. Ele ainda teve de emagrecer 7 quilos para adquirir uma aparência que pudesse representar Cazuza tanto em sua fase saudável quanto em seus últimos anos de vida, quando a aids o deixou extremamente debilitado.
Vale o sacrifício em busca de qualquer detalhe, uma vez que o papel principal em um musical de porte pode alavancar a carreira do artista e tornar-se um marco em sua trajetória (veja o quadro). Um dos exemplos recentes mais destacados dessa ascensão aconteceu com o ator Tiago Abravanel. Há dois anos ele foi o escolhido para interpretar Tim Maia no palco. Sua incrível semelhança com o impagável cantor, seja na entonação, seja nos trejeitos, valeu-lhe o elogio unânime da crítica e resultou em um salto profissional. Ganhou um papel na novela Salve Jorge, exibida em horário nobre na Rede Globo, e agora está em Joia Rara, da mesma emissora. O segredo do sucesso é simples assim: antes de ser médium, é preciso ser ator.