Museu Nacional reabre parte do acervo com destaque para o Bendegó
Peça mais icônica de toda a coleção, meteorito ressurge das cinzas como símbolo da reconstrução do local

Em 1784, um menino pastoreava o gado da família em Monte Santo, no sertão baiano, quando se deparou com uma enorme rocha escura, bem diferente das que já tinha visto. Ao chegar em casa, o garoto comentou sobre a descoberta e o pai dele, Joaquim da Motta Botelho, fiel súdito da realeza, tratou de comunicar o fato às autoridades. No ano seguinte, houve a primeira tentativa de transferir o objeto de proporções gigantescas a Salvador, mas a carreta que o transportava despencou morro abaixo e o pedregulho foi abandonado às margens do riacho Bendegó. No início do século XIX cientistas constataram que se tratava de um meteorito. Somente em 1887, por ordem de Dom Pedro II, foi retomada a saga para removê-lo do local e trazê-lo ao Rio, onde seria exposto no Museu Nacional, à época instalado no Campo de Santana, no Centro. A epopeia durou 172 dias, com direito a trilhas abertas a facão, inundações, sete tombos e descidas arriscadas em veículos adaptados com rodas duplas e trilhos improvisados. Uma vez em solo carioca, ele foi recebido pela Princesa Isabel.

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Estima-se que o maior fragmento espacial já encontrado em solo brasileiro tenha 4,5 bilhões de anos, a mesma idade da Terra. O colosso metálico pesa 5 360 quilos e é composto basicamente por ferro. Foi justamente por isso que ele resistiu às chamas que consumiram o palácio de São Cristóvão em setembro de 2018, após um curto-circuito. A peça guarda cicatrizes de sua própria jornada espacial: um corte na parte frontal revela a composição interna, em contraste com a superfície escura. Intacta, a peça do acervo que até então contava com vinte milhões de itens tornou-se símbolo de resiliência. Na reabertura parcial do museu, marcada para 6 de junho – data do aniversário de 207 da instituição – a rocha será o principal destaque. “Ela representa uma conexão direta entre o universo e a história do Brasil. Sobreviveu ao espaço, ao tempo e ao fogo. Ele não é apenas um objeto de estudo, mas um elo vivo entre passado, presente e futuro”, filosofa a astrônoma e curadora Maria Elizabeth Zucolotto, responsável pelo cuidado com o acervo meteorítico do museu.
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Nos últimos meses, a sala onde o corpo sólido está exposto passou por uma criteriosa restauração: pinturas decorativas do século XIX, antes escondidas por camadas de tinta, foram redescobertas e restauradas por equipes de conservação. Esse será o primeiro ambiente do museu restaurado por completo, servindo como marco do início do renascimento do edifício e também como memorial simbólico da tragédia e do esforço coletivo para a sua reconstrução.
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O meteorito também ganhou um banho de loja. “Durante a limpeza, conseguimos recuperar o brilho natural da peça, destacando novamente as figuras de Widmanstätten, padrões internos únicos formados por ligas metálicas em resfriamento lento”, explica Maria Elizabeth. As visitas mediadas, organizadas entre junho e julho, vão oferecer ao público a oportunidade de conhecer outros dois espaços: o pátio da escadaria monumental, onde será posicionado o esqueleto de uma baleia cachalote de 15,7 metros de comprimento e 80 toneladas, e uma das alas laterais, ainda em obras, que receberá itens selecionados pelos curadores.

A restauração de um dos mais imponentes museus brasileiros vem avançando por meio do Projeto Museu Nacional Vive ó uma parceria entre a UFRJ, a Unesco e o Instituto Cultural Vale. De acordo com um balanço da empreitada, divulgado em abril, 80% dos telhados do Paço de São Cristóvão já foram refeitos e 75% das fachadas, pintadas com o tom de amarelo original do palácio, restauradas. A reforma completa do edifício está orçada em 516,8 milhões de reais. Também há novidades, como a claraboia projetada para otimizar a iluminação natural e proteger os ornamentos arquitetônicos do palácio. Ainda é necessário captar cerca de 170 milhões de reais para a etapa final das obras e a montagem das exposições de longa duração.
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A reinauguração definitiva deve acontecer em 2028 e, conforme as obras avançam, mais reaberturas graduais estão previstas até lá. “É muito emocionante ver o museu renascer. Vivo um momento único como pessoa e profissional”, diz o diretor da instituição, Alexander Kellner, que tinha apenas sete meses de casa quando as labaredas consumiram o imponente edifício. A antiga morada da família imperial aos poucos recobra sua imponência e se prepara para voltar a ocupar seu lugar como o mais importante museu de história natural e antropologia da América Latina. Cerca de 14 000 itens foram doados à instituição, incluindo um manto tupinambá devolvido pela Dinamarca. Kellner deixará o cargo em 2026 e pretende escrever um romance sobre o trauma e os esforços para a retomada. “Nem tive tempo para o luto”, resume.

Lançado no início do ano, o documentário A Pedra que Caiu do Céu, dirigido pelo pesquisador e professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Rodrigo Gontijo, promoveu um reencontro simbólico do aerólito com a comunidade do sertão que o acolheu por cem anos. “O meteorito é testemunha de eventos históricos. A sua sobrevivência nos mostra que, mesmo diante da destruição, é possível reerguer o museu com dignidade, afeto e ciência”, conclui a astrônoma Maria Elizabeth. Que o Bendegó, no futuro, seja testemunha de zelo e cuidado
com a memória brasileira.