Parece uma outra cidade
Em duas décadas, muita coisa mudou na metrópole que recebe a Rio+20. Mas, apesar de todos os avanços, não são poucos os desafios que restam pela frente
Apenas eventos de grandeza e abrangência excepcionais são capazes de atrair a atenção simultânea de todo o mundo para uma única cidade. É nessa categoria que se enquadra a conferência Rio+20, que reúne, no Riocentro, delegações e chefes de estado dos cinco continentes para discutir o futuro do planeta. Trata-se de uma oportunidade rara para qualquer metrópole e, no caso carioca, torna-se ainda mais especial. Foi aqui, há exatos vinte anos, durante a Eco 92, que questões como biodiversidade, mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável começaram a ser debatidas em escala global. Ou seja, pela segunda vez estamos sob os holofotes. E temos a chance de mostrar quanto avançamos desde então. A criminalidade, que há duas décadas era uma ferida aberta, tem diminuído com medidas eficazes de pacificação das favelas. A infraestrutura urbana passa por um processo de revitalização, depois de anos de abandono. A vocação para lançar modismos, tendências e talentos em áreas tão diversas como cultura, gastronomia e televisão se consolidou. No entanto, é preciso reconhecer que ainda derrapamos em várias áreas, entre elas as metas verdes, razão maior do evento. A despoluição da Baía de Guanabara, uma das principais discussões da conferência de 1992, ainda está longe de se tornar realidade. E, pior, a quantidade de sujeira despejada diariamente quadriplicou. Nas próximas páginas, o leitor terá a oportunidade de comparar vinte aspectos da cidade de 1992 com a de 2012. E perceber que, por mais alvissareiras que sejam nossas conquistas, ainda há muito a ser feito.
Urbanismo
1- A orla ficou mais bonita
Intervenções de grande porte nunca acontecem sem polêmicas. O maior debate de 1992 foi motivado pelo projeto Rio Orla, que gerou queixas devido às obras conduzidas em pleno verão. Em compensação, quando tudo ficou pronto, os cariocas se viram diante de um novo modelo de interação com o principal espaço público da cidade. Do Leme ao Pontal, as barracas improvisadas e os trailers velhos foram substituídos por 300 quiosques feitos de fibra e madeira. O piso original do calçadão foi reconstruído. A ciclovia de quase 30 quilômetros de extensão e a iluminação noturna deram novo aspecto às praias, ampliando o tempo de permanência à beira-mar. Em 2005, uma nova reforma iniciou a troca dos quiosques de madeira por modelos de vidro, mais confortáveis e equipados com banheiros. Em um sinal incontestável do avanço da internet, que ainda engatinhava há duas décadas, é possível acessar a rede, gratuitamente, entre um mergulho e outro em Copacabana, Ipanema e Leblon.
Habitação
2 – A Barra inchou
“Sorria, você está na Barra.” A frase, estampada em um enorme outdoor logo na descida do Túnel do Joá, avisava aos recém-chegados que ali ficava a Terra Prometida dos imóveis nos anos 90. Hoje, o bairro se aproxima da saturação e quem passa pela mesma via expressa tem mais vontade de chorar do que de rir, tal o engarrafamento. Os oráculos do mercado imobiliário apontam agora para novas frentes de expansão. Graças às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), o Méier e a Vila Isabel experimentam uma valorização inédita. Ali, o metro quadrado de um imóvel com quatro quartos passou de 1?944 reais em janeiro de 2011 para 3?157 em dezembro. Com as obras do Porto Maravilha, o Centro também voltou a ser atraente e os preços subiram 40%.
Trânsito
3 – Vou de ônibus
No início da década de 90, imaginava-se que as autopistas seriam a melhor solução para desatar o nó causado pelo trânsito na cidade. Com essa esperança, o governo estadual construiu a Linha Vermelha. A conclusão de sua primeira etapa, de fato, reduziu em duas horas o tempo de viagem diário entre a Baixada Fluminense e o Centro. Mas ela não se mostrou uma solução duradoura. Com a expansão da frota de automóveis, o mesmo trecho hoje voltou a ser um calvário para os motoristas. Há três semanas, a prefeitura inaugurou um novo modelo de intervenção viária. Trata-se de um corredor exclusivo de ônibus, separado do tráfego de carros, o BRT. Com 38,5 quilômetros de extensão, ligando a Barra à Santa Cruz, a Transoeste é a primeira pista com essa proposta. O início parece promissor. O percurso, antes feito em uma hora e quarenta minutos, caiu para quarenta minutos. “Privilegiar o transporte coletivo é a melhor opção”, afirma Ronaldo Balassiano, especialista em transportes da Coppe.
Transporte
4 – Ainda fora dos trilhos
As ruas engarrafadas a qualquer hora do dia não deixam dúvida: o número de carros no Rio aumentou demais nos últimos vinte anos – quase três vezes, passando de 900?000 para 2,5 milhões. Para piorar esse cenário, a opção mais óbvia também apresenta dificuldades. Com 23 estações em 1992 e 35 em 2012, o metrô carioca está aquém do que a capital exige. Superlotação, lentidão e atrasos constantes são parte da rotina. Mesmo com a chegada dos novos trens, prevista para março de 2013, uma questão crucial persiste: a configuração das linhas. Ao contrário de metrópoles como Paris, Londres e Nova York, nas quais os percursos cobrem toda a cidade, no Rio se optou por um eixo central, com uma única ramificação. E a expansão programada para a Barra, prometida para 2016, apenas esticará esse mesmo trajeto.
Segurança
5 – Uma Chance à paz
Se existe uma área em que o Rio evoluiu nas últimas duas décadas é a de segurança pública. Em 1992, a conferência da ONU aconteceu em uma cidade onde tanques de guerra ficavam com os canhões voltados para os morros. As chacinas da Candelária e de Vigário Geral, os arrastões nas praias da Zona Sul e o aumento do poder de fogo dos narcotraficantes eram noticiados nos quatro cantos do planeta. O índice de mortes por homicídio chegava a 64 a cada 100?000 habitantes – perfil de áreas conflagradas ou em guerra civil. Ainda longe do ideal, a taxa atual é quase três vezes menor. A queda vem a reboque da implantação das UPPs nas áreas dominadas por traficantes, uma virada brutal na política de combate ao crime. De 2008 para cá, 23 unidades desse tipo foram instaladas em favelas cariocas, tirando 300?000 moradores do jugo dos bandidos.
Lazer
6 – Fechado para reforma. de novo
Paredes descascadas e rachadas, fiação elétrica exposta, cadeiras enferrujadas e banheiros destruídos retratavam o abandono em que o Maracanã se encontrava fazia duas décadas. E quem achava que não havia vergonha maior do que exibir a visitantes estrangeiros o templo do futebol em tal situação se surpreendeu com uma tragédia ocorrida meia hora antes de Flamengo e Botafogo começarem a disputar o título do Campeonato Brasileiro, semanas depois da Rio 92. Parte da grade de proteção da arquibancada cedeu, deixando dois mortos e noventa feridos. O estádio passou mais de seis meses em obras, deslocando os jogos do campeonato estadual para São Januário. Hoje, o Maracanã está novamente fechado e em obras, desta feita para abrigar a final da Copa de 2014. Com isso, o estádio número 2 da cidade, o Engenhão, brilha sozinho. O complexo, projetado para sediar provas do Pan-Americano e arrendado pelo Botafogo até 2027, não consegue se igualar ao antigo maior do mundo em gigantismo e história, mas ganha em visibilidade do campo e conforto.
Economia
7 – O dinheiro está voltando
Quem tem mais de 30 anos com certeza vai se lembrar dos duros anos de crise, inflação e planos econômicos frustrados que marcaram a década de 80 e o início dos anos 90. Vai se lembrar também da revoada de empresas que fechavam os escritórios na cidade e migravam para São Paulo. Graças à estabilização da economia e à descoberta da reserva na camada de pré-sal, aliadas à perspectiva de sediar os eventos esportivos mais importantes do mundo, o Rio voltou a surfar na bonança. Os setores naval e petrolífero são os que mais prosperam, ao mesmo tempo em que grandes multinacionais fincam âncoras à beira-mar. “O marasmo econômico impedia que os empresários pudessem pensar a longo prazo. Esse cenário se inverteu, e o Rio voltou ao mapa dos grandes negócios”, afirma o economista Sérgio Besserman.
Ambiente
8 – O fim do lixão
Por três décadas, a prefeitura do Rio e a de outros oito municípios da região metropolitana depositaram, sem nenhum cuidado ou proteção ambiental, 70 milhões de toneladas de lixo no aterro sanitário de Gramacho. A falta de controle criou uma vasta terra de ninguém formada por outros 42 depósitos clandestinos, que contaminaram o solo e o lençol freático. No último dia 3, o local foi desativado e os dejetos passaram a ser levados para a Central de Tratamento de Seropédica, projetada para aproveitar seu potencial energético. Um passo importante que agora precisa ser aprimorado com medidas complementares, como o aumento da coleta seletiva.
Saúde
9 – A dengue não dá trégua
Entre os flagelos que nunca deixaram de atormentar os cariocas nas duas conferências, a dengue tem lugar de destaque. Toda vez que o verão se aproxima, o temor da proliferação do mosquito ressurge. Em 1992, a cidade enfrentava a segunda epidemia, que deixou 91 mortos. Passados vinte anos, experimentamos o quinto surto, com 50?000 vítimas e doze óbitos. Foi menos letal que o anterior, de 2008, quando 158 pessoas morreram, mas igualmente danoso para a imagem da cidade. “É difícil pensar em erradicação da doença num país onde circulam os quatro tipos de vírus”, diz Silvia Cavalcanti, do instituto de microbiologia e virologia da UFF.
Esgoto
10 – Em águas turvas
O que poderia ser uma magnífica recepção a quem chega aos aeroportos do Galeão e Santos Dumont é, na verdade, motivo de desalento. Em meio ao cenário imponente, manchas imundas e gigantescas turvam a água de uma das baías mais bonitas do mundo. Há duas décadas, 2 milhões de toneladas de esgoto eram despejados diariamente ali, além dos constantes derramamentos de óleo. Hoje, mesmo com a expansão da coleta de dejetos, esse volume quadruplicou, chegando a 8,4 milhões. Também sacrificada pela poluição, a Lagoa Rodrigo de Freitas sofreu maus-tratos semelhantes. Nos últimos anos, porém, passou por um processo de recuperação patrocinado por empresas privadas, entre elas as do bilionário Eike Batista. O cenário ainda está longe do ideal, mas melhorou. Dos 16?000 coliformes fecais por 100 mililitros de água registrados em 2006, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) aponta atualmente a concentração de apenas 600.
Esporte
11 – Na crista da onda
Nos primeiros verões da década de 90, o bodyboard se instalou com força total nas praias cariocas. Era a influência dos bons resultados conquistados pelo carioca Guilherme Tâmega, que saiu das marolas do Posto 5, em Copacabana, para se sagrar campeão mundial da modalidade por três vezes consecutivas. Com 93 quilômetros de litoral, é natural que a cidade abrigue praticantes dos mais diversos esportes aquáticos e náuticos ? todos fãs de novidades. Este ano, por exemplo, foi marcado pela dupla pranchão e remo do stand-up paddle. Estima-se que 2?500 cariocas já tenham se rendido a essa variação do surfe surgida no Havaí, na década de 60.
Tecnologia
14 – Todo mundo agora tem um
Hoje item de primeira necessidade, o celular extrapolou completamente as fronteiras da telefonia. Serve para trocar e-mail, navegar na internet, entrar em redes sociais e usar programas de GPS. Em breve será possível fazer compras e pagar contas de hotéis e restaurantes. Atualmente, o Rio e os municípios vizinhos concentram 17 milhões de aparelhos em operação. Quando a Telerj Celular começou a operar, em 1990, havia apenas 700 linhas no Rio. A procura pelo telefone móvel era tão grande que a fila de espera chegava a seis meses. Quem não quisesse esperar recorria ao mercado negro e desembolsava 400 dólares pelo número e entre 450 e 2 500 dólares pelo aparelho.
Gastronomia
12 – Do estrogonofe ao bolinho
Um dos indicadores do potencial gastrônomico de uma cidade costuma ser o grau de inovação de seus restaurantes. Sob esse aspecto, o Rio dava a impressão de terra devastada. Tanto que uma das estrelas dos cardápios de elite era justamente o picadinho de origem russa que leva o nome do barão Stroganov, o manjadíssimo estrogonofe. Essa é mais uma área de evolução incontestável. Passados vinte anos, a cidade concentra alguns dos mestres-cucas mais respeitados do país, e a iguaria onipresente nos menus é o originalíssimo bolinho de feijoada, criado em um rompante de criatividade pela chef Kátia Barbosa, do Aconchego Carioca, e incensado por medalhões do ramo, como Roberta Sudbrack e Claude Troisgros.
Carreira
13 – Quero ser chef
Há vinte anos, a perspectiva de tranquilidade financeira levou uma multidão de jovens a disputar uma vaga no curso de odontologia. A relação de candidatos por vaga chegava a 47 nas três principais universidades, UFF, Uerj e UFRJ, superando até mesmo medicina. Agora, o foco migrou da boca para o estômago. A profissão de chef de cozinha deixou de ser um ofício autodidata ou passado de pai para filho para tornar-se a carreira mais disputada do vestibular da UFRJ, com 115,88 candidatos por vaga. A medicina, de novo, ficou para trás, com 104,23.
Moda
15 – O charme das areias
Entre as imagens que simbolizam o Rio para o resto do mundo, o Corcovado e o Pão de Açúcar só encontram rival à altura nas fotografias de mulheres de biquíni em Ipanema. E cada época é marcada por um estilo bastante peculiar. Nos primeiros anos da década de 90, reinaram os modelos asa-delta e, principalmente, o ousado fio-dental, exibido por musas como Monique Evans e Luiza Brunet. O criador da peça foi o estilista Cidinho Pereira, dono da marca Bumbum Ipanema. Hoje, os lacinhos dominam nossas areias. Eles são um pouco mais comportados do que seus antecessores, mas mantêm a sensualidade das cariocas, a exemplo da modelo Dani Bananinha. Os visitantes da Rio+20 não devem estranhar esse visual. Criações da estilista Lenny Niemeyer são usadas por celebridades internacionais.
Noite
16 – O samba pede passagem
Para muita gente, nomes como Resumo da Ópera, Hippopotamus, Mistura Fina e Jazzmania fazem tanto sentido quanto Pacto de Varsóvia e União Soviética. No entanto, há um enorme contingente de cariocas que ainda hoje suspira pelas noitadas embaladas pelo pop internacional e disco music dos dois primeiros e pelas revelações da MPB e ícones do jazz que se exibiam nos últimos. Localizadas na Zona Sul, as quatro casas dominavam a noite do Rio. Da mesma forma, quem conhecia a decadente Lapa de então jamais imaginaria a efervescência atual, com uma nova geração de sambistas apresentando-se em bares e espaços de shows para um público ávido por diversão. Nos últimos cinco anos, o velho reduto boêmio, agora revitalizado, recebeu 120 novos estabelecimentos, um crescimento de 50%.
Televisão
17 – Talento atemporal
Com apenas 21 anos, Cláudia Abreu já era dona de um currículo respeitável. Havia atuado em cinco novelas, uma delas como protagonista. Sob a direção de Antônio Abujamra, encarou Hamlet, papel que a levou a disputar o Prêmio Molière de melhor atriz com Renata Sorrah e Cleyde Yaconis. Em 1992, Cláudia confirmava mais uma vez por que estava entre as melhores atrizes de sua geração ao interpretar a guerrilheira Heloísa na minissérie Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. O corpo mignon e o rosto angelical da atriz contrastavam com o espírito combativo e radical da personagem, que morreu fuzilada na trama. “Ela é uma intérprete excepcional. Pode fazer qualquer papel brilhantemente”, diz Braga, um de seus fãs confessos. Vinte anos e quatro filhos depois, no papel da cantora brega Chayene, da novela Cheias de Charme, ela volta a brilhar e rouba a cena mais uma vez.
Teatro
18 – Broadway à beira-mar
As filas ao longo da Avenida Graça Aranha denunciavam que algo diferente acontecia no Teatro Ginástico, no Centro. Acostumada a ver adaptações e traduções de clássicos, a plateia carioca se encantou com a jovem Claudia Raia. Do alto de seu 1,80 metro, a atriz, recém-saída do humorístico TV Pirata, protagonizava 25 personagens no musical Não Fuja da Raia. Foram sete anos em cartaz e cerca de 120?000 espectadores. Um marco capaz de acender a centelha do gênero teatral que, passadas duas décadas, se tornaria a especialidade dos palcos cariocas, com superproduções de sucesso, a exemplo de Tim Maia, Um Violinista no Telhado e da recentíssima O Mágico de Oz.
Sociedade
19 – Socialite, eu?
No início dos anos 90, Patrícia Leal era o símbolo máximo de uma turma de locomotivas da alta sociedade que, ao contrário de suas antecessoras, já não ligava tanto para sobrenomes e trabalhava (embora não precisasse). Vinte anos depois, tal espaço é ocupado por moças como Betina de Luca, Julia Monteiro de Carvalho e Maria Frering. Nascidas em berço de ouro e habituadas a ditar padrões de comportamento, elas se destacam pelo visual, investem na carreira, mas rejeitam a alcunha de socialites. São it-girls.
Cinema
20 – Sucessos de bilheteria
O ano de 1992 foi decisivo para a indústria cinematográfica carioca. Em meio à crise provocada pelo fim da Embrafilme, o setor começou a se reerguer com a RioFilme, criada para fomentar a produção local. Foi o ponto de partida de um processo de renascimento, com fitas do porte de Cidade de Deus e Tropa de Elite I e II. Essa última, lançada em 2010, virou recordista absoluta de público no país, com 11 milhões de espectadores, e foi ainda indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Paralelamente, a boa fase da cidade tornou-a não só cenário para locação de produções internacionais como também um dos locais preferidos dos estúdios para suas premières mundiais.