A fúria dos hippies
Os bichos-grilos de Mauá vão à luta contra o asfaltamento da única estrada de acesso à região
Adepto de um estilo de vida contemplativo, em que convivem preceitos da filosofia oriental, a crença na energia que emana dos cristais e a devoção a divindades da natureza ? duendes entre elas ?, o mineiro Francisco Ribeiro, 40 anos, anda inquieto nos últimos tempos. Ele teme ver sua rotina embalada por meditação e canções new age irremediavelmente prejudicada, segundo afirma, por forasteiros que chegam a bordo de carros que reverberam pagode e funk no último volume e deixam para trás um rastro de garrafas PET e latas de alumínio. Há sete anos, Ribeiro refugiou-se em meio às montanhas e florestas de Visconde de Mauá, distrito do município de Resende encarapitado a 1?300 metros de altitude na Serra da Mantiqueira, justamente para fugir do corre-corre das grandes cidades. Agora se prepara para o pior, temendo ver a única rua da vila onde vive ocupada por hordas de turistas de fim de semana e farofeiros. “Este lugar vibra em um plano quântico diferenciado e abriga pessoas que buscam novas formas de espiritualidade. Agora vamos ser invadidos. Acho que não vão nem entender o que vendo aqui na minha loja”, diz ele, em meio a artefatos como miçangas, espelhos, estrelas de davi, imagens de Buda e deuses indianos.
O que tem tirado o sossego de Ribeiro é uma obra que ficará pronta dentro de dois meses. Em outubro, deve ser concluída a pavimentação da rodovia de acesso ao vilarejo, batizada como Estrada Parque Capelinha-Mauá, uma empreitada de 59 milhões de reais. A pista simples, de mão dupla, substitui um caminho de terra tenebroso e esburacado, na verdade uma íngreme subida de 20 quilômetros de extensão, entre escarpas, barrancos e precipícios. Festejada por donos de hotéis, pousadas e restaurantes dos arredores (alguns deles bem luxuosos), a melhoria foi recebida com hostilidade por boa parte dos 6?000 moradores do lugarejo e das vilas vizinhas de Maringá e Maromba. Remanescente dos primeiros hippies que se refugiaram por ali durante os anos 70, o grupo despreza a benfeitoria e todos aqueles que a defendem. “Já estão falando em proibir nossas bancas nas ruas porque eles acham que estragamos a paisagem”, preocupa-se a artesã carioca Livia Feitosa, 31 anos, que vive na vila desde 2007, ao lado da filha Maria Vitória, de 3, e do marido Leandro da Silva, 34. Toda a família sobrevive da produção de brincos e pulseiras, vendidos nas feirinhas da região. “Para mim, o progresso só traz desarmonia.”
Os primeiros embates entre os bichos-grilos e os chamados “capitalistas selvagens” ? como eles definem os defensores da estrada ? remonta a 2005. Naquele ano, começaram as primeiras discussões sobre a pavimentação e formou-se um conselho envolvendo representantes das prefeituras dos municípios da região, empresários, comerciantes e também os artesãos. Já nas primeiras reuniões ficou evidente o descompasso de interesses. “A obra é um benefício enorme, que finalmente vai permitir que este lugar cresça e receba seus visitantes com mais conforto”, defende Helena Bühler, 93 anos, dona do hotel mais antigo da região, o Bühler, fundado nos anos 30.
Diante da inevitabilidade dos fatos, o grupo que se opunha à mudança percebeu que defender a preservação da estrada de terra era uma causa perdida. As assembleias transformaram-se em bate-bocas em que se discutia desde o lugar onde os insatisfeitos poderiam ou não montar suas bancas até o destino das pererecas, macacos e esquilos que seriam desalojados. Em uma delas, os representantes dos hotéis espinafraram os rivais em meio a palavrões. “Vimos que não havia nenhuma chance de diálogo e a maioria resolveu parar de ir aos encontros”, conta Clerismar Honório, 47 anos, representante dos artesãos dentro do conselho. Derrotados, os hippies passaram a pôr em prática o ideário de outro de seus grandes guias. Adotaram o princípio da resistência pacífica, preconizado pelo líder indiano Mahatma Gandhi. Para isso, preparam-se para manter a todo custo as feirinhas de artesanato à beira do asfalto novinho em folha, junto dos hotéis de luxo e restaurantes de Maringá e Maromba, os pontos mais frequentados pelos visitantes. Também prometem montar cerco em torno de cachoeiras e trilhas para intimidar quem ousar desrespeitar ou agredir a Mãe-Natureza. “Mauá é nosso território há quase quarenta anos. Ninguém vai nos pôr para fora. Não somos violentos, mas temos outras maneiras de mostrar nosso descontentamento”, avisa a carioca Livia em sua banca de bijuterias. Pois que ninguém pense em retirá-los dali apelando apenas para expressões como “paz e amor”. Desta vez, os hippies estão mesmo furiosos.