Era 2014, e o cientista político Thiago Nasser finalizava sua tese de doutorado sobre consumo alimentar. Nela, o pesquisador abordava a importância dos chefs na promoção de produtos orgânicos e brasileiros, e cutucava a questão da reforma agrária. Foi quando surgiu a oportunidade de juntar a fome com a vontade de comer. Frequentador do extinto bar Comuna, em Botafogo, ele conheceu um dos sócios, o jornalista Bruno Negrão, que comentou sobre a dificuldade de encontrar fornecedores e itens de qualidade. Assim nasceu a Junta Local, uma receita de sucesso que estreou como um site para cadastrar e ajudar pequenos produtores a vender diretamente ao consumidor. O negócio foi aos poucos ganhando substância, saiu do mundo virtual e virou uma grande feira, com edições já realizadas por toda a cidade, Niterói e até São Paulo.
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O próximo desafio é ousado — assumir o Mercado São José, um cartão-postal de Laranjeiras, após cinco anos de abandono. Com a empresa de engenharia Engeprat, a Junta forma o consórcio que será responsável nos próximos 25 anos pela gestão do espaço, prestes a completar oito décadas. A reinauguração está prevista para o segundo semestre de 2024. “Acredito na gastronomia como uma ferramenta de transformação. Nosso objetivo é oferecer comida boa, local e justa para as pessoas”, resume Thiago, dando uma provinha do tempero presente nas iniciativas que levam a marca registrada da Junta.
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Dos primeiros pedidos feitos pela internet, a Junta Local passou a atuar em frentes variadas e hoje reúne 180 “ajuntados”, como são chamados os associados. Eles se espalham por três feiras fixas, que já fazem parte do calendário da cidade (em Botafogo, na Gávea e na Tijuca), além de baterem ponto na feirinha da Travessa Euricles de Matos, em Laranjeiras, e nos eventos que acontecem com frequência em endereços como o Museu da República, o MAM e o CCBB, reunindo 5 000 pessoas, em média, por edição. A feira on-line, que serviu de embrião para o projeto, segue a pleno vapor, com entregas em domicílio de segunda a sexta de itens avulsos ou das caixas do clube de assinatura, o Assina Junta — elas contêm desde legumes e verduras a produtos mais sofisticados, como charcutarias artesanais e cafés de torrefação especial. São todos selecionados com base em uma “carta de valores” criada pelo grupo em 2017, na qual se prioriza, entre outros, a proximidade do produtor, o respeito ao meio ambiente e a qualidade do alimento.
Com essas premissas em mente, a Junta se prepara para fazer a curadoria dos expositores do Mercadinho São José. O prédio e o terreno ao lado pertenciam ao INSS e foram comprados pela prefeitura do Rio para serem readequados ao uso gastronômico e cultural que o imóvel, tombado pelo município em 1994, tinha até ser fechado, em 2018. “Entendemos que era importante reativar o mercado, e o modelo da proposta do consórcio vencedor se mostrou o melhor”, diz Gustavo Guerrante, presidente da Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar). Com aporte de 8,5 milhões de reais, o Mercado São José vai ganhar cobertura no pátio interno, que será climatizado, e uma área de convívio no terraço. Ampliados, os dez tradicionais boxes serão destinados a “ajuntados” de diferentes especialidades, que podem ir da padaria à peixaria, passando por açougue, charcutaria e queijaria. O característico chafariz será mantido. No anexo, que terá elevador, o entreposto se estende pelo 1º piso; no 2º, haverá bares e restaurantes; já no 3º, projeta-se o terraço com ombrelones. “Há uma tendência de criar mercados com boa gastronomia e climatização”, ressalta o gestor do projeto pela Engeprat, Luis Renato Rocha, que participou da revitalização do Mercado Municipal de Niterói.
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A ideia é agitar a área com um calendário de programação cultural, oficinas e experiências gastronômicas. “Mercados, como feiras, precisam ter curadoria e gestão, senão não funcionam”, defende Thiago, prevendo eventos temáticos diversos, dedicados aos refugiados, à Amazônia e a vinhos naturais, só para dar alguns exemplos. O local será uma espécie de showroom da empresa, que hoje conta com dois antigos produtores e agora sócios — a confeiteira Mariana Medeiros, que cuida dos assuntos comunitários, e Guilherme Cerqueda, que trocou a palha italiana pela administração financeira. A dupla busca posicionar a Junta como um movimento, com atuação ativa em comissões e fóruns, como o do Pacto de Milão, fomentado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Não somos uma mera feirinha gastronômica. Isso aqui é importante para a cidade. Todo mundo gosta de comer bem, e a comida é algo que pode unir as pessoas”, reforça Thiago, empenhado em envolver o poder público na elaboração de políticas que, a partir do zelo com a alimentação, possam contribuir não só para a boa nutrição, mas também para saúde pública, cultura e até questões urbanas.
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A inspiração para transformar a Junta Local na feira que conquistou os cariocas e agora vai virar mercado veio da Argentina, onde Bruno conheceu o Buenos Aires Market, paraíso dos fãs de alimentos orgânicos e locais, entre queijos, embutidos, pães, mel, geleias e doces típicos. “Queríamos um espaço assim, vivo e cheio de significado”, lembra. O Rio é tradicionalmente afeito a esse tipo de iniciativa. No último meio século, brotaram na paisagem feiras temáticas em profusão — a Hippie de Ipanema, a do Rio Antigo, a Babilônia e, mais recentemente, a Carioquíssima e O Fuxico. Bastou uma convocação, via Facebook, e logo apareceram quarenta produtores de alimentos ansiosos para estabelecer contato direto com o consumidor. “Houve uma identificação do público, e o espaço passou a ser um lugar de projetos gastronômicos, de pessoas que iam fazer comida usando ingredientes dali”, relata Thiago, orgulhoso da exitosa trajetória. Está aí a essência desse tipo de feira: selar um elo de confiança, saber como a comida que vai à mesa é produzida, trocar receitas e memórias. Agora, a Junta terá, além de tudo o que já colheu, uma casa para chamar de sua.