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O novo habitat do Jacaré

Ex-dançarino do É o Tchan se reinventa como ator e brilha em peça-cabeça

Por Rafael Teixeira
Atualizado em 5 jun 2017, 14h34 - Publicado em 27 abr 2012, 18h36
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jacare-01.jpg (Redação Veja rio/)
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Na última parte da peça A Negra Felicidade, o ator Edson Cardoso fica sozinho no palco. Ele chora ao recitar anúncios deploráveis, publicados pelo Jornal do Commercio no século XIX. São relatos de senhorios denunciando a fuga de escravos e a oferta de cativos para a realização de serviços domésticos. A intensidade da cena arrepia o público, que reforça o pranto. Esse é o trecho mais impactante da montagem dirigida por Moacir Chaves, que esteve em cartaz no Teatro Serrador até domingo passado (22) e retorna ao mesmo palco no próximo dia 9. Quem lê a ficha técnica do espetáculo dificilmente associa o nome à pessoa. O artista que comove a plateia ainda é conhecido por um tipo que encarnou no passado: o Jacaré, ex-dançarino do grupo É o Tchan, fenômeno rebolativo do fim da década de 90 com mais de 6 milhões de discos vendidos. ?A peça parece ser toda construída para a fabulosa entrada dele em cena?, afirma o premiado ator e diretor Julio Adrião. ?Ele desmonta completamente qualquer dúvida que se possa ter sobre seu talento.?

Aos 39 anos, Jack, como costuma ser chamado, mostra-se à vontade no novo habitat. A transição é ainda mais espantosa se levarmos em consideração o gênero ao qual ele vem se dedicando: o teatro experimental. Já esteve em três espetáculos do diretor Ivan Sugahara, um ícone das montagens-cabeça. Ao tecer um mosaico que inclui autos de um processo movido por uma escrava contra o seu senhor, textos do russo Anton Tchekhov (1860-1904) e do padre Antônio Vieira (1608-1697), além dos anúncios do Jornal do Commercio, A Negra Felicidade também escapa das convenções. É sua segunda parceria com Moacir Chaves, numa tabelinha iniciada no ano passado com Retorno ao Deserto, trama cujo eixo era o reencontro de uma família após anos de exílio. Na ocasião, o diretor precisava de um ator negro para interpretar um paraquedista e recebeu a indicação de Edson Cardoso, que passou no teste com sobra. ?Ele tem um domínio de corpo incrível. É uma pessoa sensível, disciplinada e disposta a aprender?, enaltece Chaves.

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A reinvenção artística de Jacaré teve início antes mesmo do esfacelamento do É o Tchan. Em 2001, cinco anos antes do fim do conjunto, ele foi convidado para fazer uma participação no humorístico A Turma do Didi – e está lá até hoje. Para se familiarizar com o básico da arte da interpretação, teve aula com dois diretores da Globo, Alexandre Boury e Paulo Aragão. E foi pegando gosto pela novidade, ao mesmo tempo em que rebolava com shortinho colado no corpo ao lado das dançarinas Sheila Mello e Scheila Carvalho em apresentações no Brasil e no exterior. Em 2004, comprou os primeiros livros de teoria teatral e, decidido a se aprimorar, saiu de Salvador e veio morar no Rio, acompanhado da mulher, a administradora Gabriela Oliveira. Aqui, fez aulas na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) e na Academia Nacional de Atores, sempre conciliando o aprendizado com a agenda abarrotada de shows. Quando o grupo foi desfeito, enfim pôde ingressar em cursos de fôlego: de manhã, fazia a CAL e, à noite, a faculdade Estácio. Durante esses dois anos de dedicação exclusiva, conheceu Ibsen, Brecht, Shakespeare, Dario Fo e Nelson Rodrigues. ?Eu era aquele aluno chato, que não deixava o professor em paz?, conta. Na montagem de formatura da CAL, a turma contou com Sugahara como diretor convidado de uma livre adaptação de Cyrano de Bergerac. O mutirão deu origem a Deixa Eu Brincar de Ser Feliz, Deixa Eu Pintar o Meu Nariz, que acabaria entrando em cartaz comercialmente em 2009 e marcaria a estreia de Jacaré na ribalta.

Apesar de conviver agora em um meio intelectualizado, o ator não extirpou de seu currículo o período na banda baiana. ?Tenho o maior orgulho de ter feito parte do Tchan?, diz ele, que vira e mexe encontra os antigos colegas. Tampouco renega seu passado de bamboleios. Tanto que, antes de entrar em cena, costuma dançar para se aquecer. É uma trajetória admirável para alguém que na infância teve uma deficiência física grave. Quarto de cinco filhos de uma família de classe média de Salvador, Edson nasceu com uma atrofia de 3 centímetros na perna esquerda. Para corrigir o problema, usou uma bota ortopédica até os 8 anos. Certa vez, a sola se soltou e o bico do calçado ficou parecido com uma boca de jacaré, fato que resultou no apelido. Na adolescência, pensava em ser bancário, mas acabou cursando eletrotécnica. Sua vida deu uma guinada em 1994, durante uma festa animada pelo Gera Samba, que tempos depois viraria o É o Tchan. Ao bailar, chamou a atenção do vocalista Beto Jamaica, que lhe pediu para repetir a performance no palco. Pouco depois se juntava de vez ao conjunto. O sucesso lhe rendeu dinheiro e viagens pelo mundo, mas, em contrapartida, deu margem a olhares enviesados. Professora da CAL, a atriz Inez Viana reconhece que torceu o nariz quando soube que o aluno vinha do grupo que perpetrou o hit Na Boquinha da Garrafa: ?Ele foi uma lição para mim. Quebrou o estereótipo e mostrou que qualquer pessoa pode ter outros atributos?. Embora jure nunca ter enfrentado uma manifestação explícita de preconceito, Jack ainda não recebeu convite para fazer um filme adulto ? atuou apenas em duas comédias de Renato Aragão. ?Já mandei e-mails para alguns diretores e não fui chamado nem para testes?, lamenta. ?Mas minha hora vai chegar.?

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