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Irreverentes, influenciadores de favelas entram na mira das marcas

Uma turma de jovens criativos egressos das comunidades explora sem vergonha sua origem humilde nas redes e faz (muito) sucesso

Por Marcela Capobianco
Atualizado em 18 jun 2021, 17h46 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00
Raphael Vicente posando no Complexo da Maré
Raphael Vicente, do Complexo da Maré: contratado pelo estúdio de conteúdo de Felipe Neto (Leo Lemos/Veja Rio)
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Em meio às revoluções da contracultura, no fervilhante ano de 1968, a figura maior da pop arte americana Andy Warhol (1928-1987) cunhou a célebre frase: “No futuro, todos terão seus quinze minutos de fama”. E olha que faltavam quase três décadas para a internet chacoalhar o modo como as pessoas interagem e se tornar uma caixa de ressonância em escala global — vasto mundo este em que uma parcela da humanidade se dedica a explorar a toda hora, ou minuto.

Assim, surgiu um gênero que vive de palpitar sobre tudo (nem sempre com a devida qualidade, é bem verdade), com alta visualização. A trilha para se tornar um influenciador nesta nova era, tendo audiência digital de milhares, às vezes até milhões de seguidores, começa a ser percorrida com vigor (e alto nível de criatividade) por uma turma nascida e criada nas comunidades cariocas e que nunca teve vergonha de mostrar o que tem e o que é.

Eles não só conquistam fãs como marcas — e vêm ganhando dinheiro e projeção. “Jamais tive receio de gravar um vídeo só porque a minha casa não é um cenário de novela, todo bonito. Quando faço graça com minha família, sei que qualquer pessoa, rica ou pobre, vai se identificar”, diz Raphael Vicente, 21 anos, morador do Complexo da Maré, na Zona Norte. Número de seguidores no TikTok: 1,7 milhão.

O jovem esguio de aparelho nos dentes é conhecido por viralizar vídeos curtos e cômicos sobre situações cotidianas. Geralmente, as produções caseiras contam com a participação da avó, Maria Antonia, 68 anos, além da madrinha, da irmã, da prima e do afilhado William, 9 anos e muito traquejo com as redes. De forma bem despojada, o clã já fez propagandas para os gigantes iFood, Nissin, Bic e Natura.

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Raphael edita tudo sozinho, no celular, e ainda resiste quando a equipe da Play9, estúdio ao qual se associou em fevereiro, oferece ajuda com os roteiros. “É impressionante como o Rapha consegue construir uma narrativa complexa e divertida em poucos segundos. Quem conta uma história engraçada ou emocionante é capaz de furar qualquer bolha”, avalia o jornalista João Pedro Paes Leme, sócio de Felipe Neto na Play9. A empresa não divulga o valor dos cachês de suas estrelas, mas o influenciador da Zona Norte garante que “a grana das publis” é sempre rachada com os parentes. “Demorei sete anos para conseguir ganhar dinheiro na internet. Fui persistente. Agora, coloco o pé na rua e todo mundo quer tirar foto comigo”, orgulha-se Raphael.

O caminho da fama nas redes às vezes transcorre de forma imprevisível. “Eu estava passeando pelo shopping e vi um pano de prato que custava 30 reais. Achei um absurdo e gravei um vídeo para mostrar que eu tinha comprado uns bem mais bonitos e dez vezes mais baratos”, lembra a autobatizada Blogueira de Baixa Renda, codinome da administradora Nathaly Dias, 28 anos, moradora do Morro do Banco, na Zona Oeste.

Aí veio a ideia de fazer uma espécie de crônica, sempre regada a humor e crítica dos padrões inalcançáveis. Pois o que era apenas uma brincadeira entre amigos despertou o interesse de um grande banco, que lhe ofereceu 10 000 reais por um punhado de postagens no período de três meses. Sem hesitar, a jovem pediu demissão do emprego, onde recebia 700 reais por mês, virou influenciadora pé no chão e disparou.

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Nathaly Dias, no Morro do Banco, cabelos curtos e com as mãos no muro
Nathaly Dias, do Morro do Banco: sucesso como a Blogueira de Baixa Renda (Gilberto Dutra/Divulgação)

Em 2020, faturou cerca de meio milhão de reais e realizou um sonho: transformar a mãe, empregada doméstica, em sócia da empresa que administra sua carreira. “A favela tem médico, advogado, engenheiro. E agora tem blogueira também. A pobreza não pode mais ser representada daquele jeito estereotipado que estamos acostumados a ver na televisão”, sustenta Nathaly.

O Brasil é um dos países mais engajados em redes sociais no planeta. Uma pesquisa da consultoria americana ComScore mostrou que, apenas em dezembro de 2020, os usuários de internet no país passaram, em média, 47 horas navegando nas redes, perdendo só para os mexicanos, por apenas quatro minutos. As postagens sinalizadas com as marcações #ad, #publi, #publipost e #promo, usadas quando há contrato publicitário em jogo, dobraram em comparação com o que foi registrado em 2019.

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Parte desse desempenho foi impulsionada pelos influenciadores, cujo engajamento subiu 31% no ano passado, como analisou a ComScore. “As grandes marcas não abandonam a publicidade convencional, mas se valem dos influenciadores para abrir diálogos com o público.

Com essa nova leva de influenciadores, empresas que se posicionam a favor da inclusão social e buscam a diversidade saem ganhando”, avalia João Vitor Rodrigues, professor de comunicação e marketing da ESPM. O especialista enfatiza ainda que um morador da favela impacta um consumidor de classes sociais mais altas. “Desde que o discurso esteja alinhado aos objetivos da marca, isso é bem possível”, diz.

Os moradores de favelas brasileiras movimentam 119,8 bilhões de reais a cada ano, como apontou um levantamento dos institutos Locomotiva e Data Favela, com base em dados do IBGE. O estudo, divulgado no início de 2020, sinaliza também que o Rio de Janeiro é o único estado do Sudeste com mais de 10% da população vivendo em comunidades — 1,6 milhão de pessoas no total.

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Somente a Rocinha concentra um número de habitantes superior a nove de cada dez municípios do país. Cerca de 90% das pessoas que residem em favelas têm um celular com acesso à internet e 97% dos jovens imergem regularmente na web. Quase metade cultiva o hábito do e-commerce, apesar de um terço ter dificuldades para receber o produto na porta de casa.

No início da pandemia, Celso Athayde, CEO da Favela Holding, coordenou diversas campanhas de doação de alimentos e sentiu a necessidade de estabelecer um canal de comunicação direta com quem vive em comunidades. Começou aí o contato com uma rede de microinfluenciadores locais, que divulgavam ações de bons projetos, como o Mães da Favela.

Deu tão certo que ele criou, com o publicitário Guilherme Pierri, a Digital Favela, que faz a ponte entre pessoas com potencial para influenciar e marcas. No Rio, já são mais de 200 cadastrados na plataforma, com trabalhos realizados para Santander, Havaianas, Ambev, Claro e TikTok, entre outras.

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A estratégia é pulverizar o cachê milionário que seria pago a uma estrela de TV entre centenas de pessoas espalhadas por favelas. “Se cada uma delas impactar dez vizinhos, o resultado já é impressionante. A linguagem deles tem um poder incomparável dentro das comunidades”, explica Celso Athayde.

Enquanto as marcas se valem da visibilidade, os jovens, moradores de bairros humildes e que sempre tiveram menos oportunidades de estudo e trabalho, decolam. “Quando comecei a ganhar dinheiro com a internet, gastei 3 000 reais de uma vez só numa loja de roupa, à vista. Ouvi a vendedora dizer que eu deveria ser mulher de bandido, mas logo a gerente me reconheceu e disse que adorava meus tutoriais de maquiagem”, conta Júlia Peixoto, 21 anos, 1,5 milhão de seguidores no Instagram e quase 500 000 inscritos no YouTube.

Júlia Peixoto de lado, segurando um frasco de maquiagem
Júlia Peixoto, de Parada de Lucas: 1,5 milhão de seguidores no Instagram (./Divulgação)

Cria de Parada de Lucas, Zona Norte, ela deu a largada nesse universo postando vídeos de hidratação capilar e, hoje, tem uma linha de produtos de maquiagem que leva seu nome. “Se eu consegui, qualquer um pode chegar lá”, afirma a talentosa influenciadora. Que voem cada vez mais alto.

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