Indústria Criativa: galpões repaginados ditam o novo hype da noite carioca
Antigos armazéns ganham outros ares com programação intensa que inclui exposição, residência de arte, cineclube, festa e roda de samba da Zona Norte à Zona Sul

Dispostos sobre um tapete persa, um sofá de oncinha e meia dúzia de cadeiras improvisadas deram outra cara à Rua Sete de Setembro, no Centro. Se em dias úteis a via anda às moscas, naquela tarde de sábado de agosto mal dava para circular. João Cavalcanti chegou cantando uma inédita, recebido por Marcelo D2 e Marcelinho Moreira, os anfitriões da roda. Ao fim, anunciou novo disco e passou o microfone adiante. Chico Alves, Silvia Duffrayer e Marquinhos de Oswaldo Cruz também soltaram a voz na empreitada batizada de Sala do Compositor, parte da programação da Ocupação Iboru, galpão recém-reformado bem ali em frente, de portas abertas para o asfalto. O movimento, criado por D2 e sua mulher, Luiza Machado, nasceu no Rio, já aportou em São Paulo e Salvador e, em dois anos, atraiu mais de 120 000 pessoas. “Estamos acostumados a ver o artista e a obra, mas quase nunca o caminho. Ocupar a rua é abrir o processo criativo para a troca”, resume Luiza. “Num cenário em que são raras as oportunidades para mostrar músicas novas, só tenho a reverenciá-los”, emenda Chico Alves, ansioso pela próxima edição.

Impulsionada pelo Reviver Cultural, plano da prefeitura que pretende transformar o Centro em um Distrito das Artes, a Ocupação Iboru soma-se a uma leva de antigos galpões industriais e casarões que ganharam vida nova. Da Zona Norte à Zona Sul, os endereços ressurgem como palcos para arte, música, teatro, cinema e fotografia. Casa Proeza e Casa Savana, no Centro; Tropigalpão, na Glória; Capiberibe 27, no Morro do Pinto; Ladeira das Artes, no Cosme Velho; e Bela Maré, no complexo de favelas, já despontam como programa no itinerário carioca. “Esses locais assumem o papel de dinamizadores urbanos, com impacto social, econômico e turístico. Sem falar nas múltiplas possibilidades de uso desses equipamentos”, avalia João Figueiredo, coordenador do programa de pós-graduação em economia criativa da ESPM. Ele lembra que metrópoles como Nova York e Londres viveram ondas parecidas. O célebre Chelsea Market, em Manhattan, por exemplo, transformou uma antiga fábrica da Nabisco — sim, a que criou o biscoito Oreo — em shopping de comida, livrarias, shows de jazz e exposições, hoje destino obrigatório de turistas e locais.
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O Mapeamento da Indústria Criativa, realizado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), publicado neste ano, mostra que a economia criativa impulsiona 3,59% do PIB brasileiro. O estudo também se debruça sobre a expansão do mercado artístico formal a partir de treze segmentos — entre consumo, mídia editorial e audiovisual, cultura e tecnologia. Só em 2023, o setor gerou 1,2 milhão de empregos e movimentou 393 bilhões de reais no território fluminense. Nos últimos quatro anos, a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro investiu mais de 1 bilhão de reais através de editais e com o auxílio da Lei de Incentivo à Cultura em projetos de arte e ocupações do gênero. “Espaços multifuncionais atraem moradores e visitantes para ocupar o Rio, impulsionando a economia e criando novas formas de renda e emprego. A presença de um novo olhar para uma área abandonada ainda estimula a população local a consumir arte”, observa Danielle Barros, à frente da pasta.

Na Rua do Ouvidor, um imóvel em ruínas, de 1895, foi minuciosamente restaurado para receber a Casa Proeza, inaugurada no início do mês com o vernissage de Geografias do Corpo, coletiva com fotos de Bá Rosalinski, Lucas Bori, Demian Jacob, entre outros artistas, sob curadoria de Gabriela Toledo. “O carioca é mimado, muda de hábito a cada seis meses. O galpão é uma tela em branco, pode ser aproveitado de diferentes maneiras e permite acompanhar essas mudanças de perfil”, opina Bá, cujo olhar revela as transformações do corpo feminino ao longo da vida. O sobrado sem divisórias abarca galeria de arte e loja-conceito com móveis da Casa90. O segundo andar, com pé-direito altíssimo, paredes de pedras e telhado aparente, se prepara para receber eventos pontuais, como um da ArtRio, fora da programação oficial da feira. “O restauro, comandado pela arquiteta Bel Lobo, foi quase um trabalho de escavação, com cuidado e respeito”, conta a designer e idealizadora Duda Ballesteros, que aplicou 370 000 reais na obra.

Artistas plásticos e amigos dos tempos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Raul Mourão e Cabelo Cobra Coral abriram há uma década, com outros sócios, o Rato (antigo Rato BranKo), na Lapa. O precursor ateliê da trupe, na Rua Joaquim Silva, já recebeu mostras de Carlos Vergara, Maxwell Alexandre e Allan Sieber, por exemplo, e ganhou DJ para dar o tom festivo. “As galerias têm uma solenidade forte e intimidadora. O Rato tem uma natureza mais gregária, de dividir com o público a intimidade de um ateliê”, resume Mourão, que planeja uma individual no Paço Imperial, com obras que decoram o local. No último sábado, a abertura da exposição de Allan Pinheiro, criado no Complexo do Alemão e hoje morador da Zona Sul, entupiu o “Baixo Rato” — nomenclatura adotada por cariocas para batizar a calçada em frente. Vizinho na Glória, o Tropigalpão segue os mesmos passos. Café com videoarte, exposições de Mar do Vale, Anísio Couto e Marcelo Conceição, além de rodas de leitura com Luiz Zerbini e Ailton Krenak são algumas das atrações já postas de pé por Denise Milfont, atriz e uma das fundadoras da residência de arte Capacete.

A nova noite carioca deixou de ter cara de boate. Com paredes de barro e dezenas de samambaias penduradas no teto, a Casa Savana, na Rua Camerino, no Centro, acaba de comemorar um ano, promovendo festas black e rodas de samba. “A cidade é cheia de espaços tradicionais, mas sentia falta de um ambiente novo, amplo, com gente bonita e música de qualidade”, comenta a pesquisadora Camila Sá, de 41 anos. O fervo dedicado à cultura africana foi escolhido pelo sambista Mosquito para lançar o disco Quinhão, em julho, e contou com a presença ilustre de Caetano Veloso e Paula Lavigne. Também já passaram por lá personalidades como Taís Araujo, Jorge Aragão, Liniker, Teresa Cristina, a primeira-dama Janja e a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. No terceiro andar do casarão, a chef Dandara Batista assina pratos típicos, como o arroz de hauçá, com carne-seca e camarão, servido nos fins de semana. A poucos metros dali, o Centro Carnavalesco Onça Preta pretende transformar a rua em corredor cultural, criando uma associação para adotar a Praça dos Estivadores. “Estamos conseguindo movimentar a cena numa área até então pouco valorizada”, resume o produtor cultural e curador da Casa Savana, Pedro Henrique Oliveira.

E, sim, no Rio um mesmo espaço é tão grande quanto democrático. Nos escombros da Fundição Zani, no Morro do Pinto, uma das primeiras fábricas de bustos e estátuas de bronze do Rio, nasceu o Capiberibe 27. A empreitada instalada na rua de mesmo nome dispõe de quinze ateliês e dez áreas comuns, entre bistrô, fonte, laje e galeria de arte. A agenda é intensa e disputada. “Sou frequentadora do ‘Capiba’ há um ano, gosto muito da possibilidade de curtir vários climas na mesma noite”, disse a publicitária Joana Ribeiro, 44 anos, depois de encarar uma fila de espera quilométrica na última sexta. Cláudia Abreu, Glória Pires e Humberto Carrão já deram o ar da graça por lá. Neste domingo (31), só entra quem tiver nome na porta: o local com capacidade para 850 pessoas foi reservado para a festa de aniversário do ator de Vale Tudo. “Quando era adolescente e me perguntavam onde eu morava, tinha vergonha de responder ‘Morro do Pinto’. Hoje, tenho orgulho. O movimento hype ajudou a comunidade a recuperar a autoestima”, observa a figurinista e sócia Adriana Lessa. De samba na rua a galerias em galpões, de festas black a exposições de vanguarda, os novos espaços culturais marcam um tempo de reinvenção no calendário carioca. Já escolheu o seu?

Confira a seguir a lista dos galpões e sobrados:









Rato. Fruto da longeva parceria entre Raul Mourão e Cabelo Cobra Coral (à dir. na foto), o art building com portão de ferro vermelho e bandeira na porta abriga vernissages e festas com DJs, além dos ateliês dos artistas plásticos. Rua Joaquim Silva, 71, Lapa. @rato.rato.rato.rato
Centro Carnavalesco Onça Preta. O sobrado capricha na programação cultural e oferece oficinas de dança e percussão, além de mostras e intervenções artísticas, todos inspirados na folia, que no Rio dura o ano todo. Rua Camerino, 58, Gamboa. @centrooncapreta
Galpão Ladeira das Artes. Um dos primeiros imóveis a liderar o hype completa uma década em 2025, com estúdio de tatuagem, festas e shows de artistas independentes em meio à Mata Atlântica. Rua Conselheiro Lampreia, 225, Cosme Velho. @ladeiradasartes
Tropigalpão. Com quatro andares e uma chamativa parede de vidro, a empreitada capitaneada pela atriz e curadora Denise Milfont acolhe projetos multidisciplinares, como o café com videoarte e promove rodas de leituras, residência artística e exposições. Rua Benjamin Constant, 118, Glória. @tropigalpao_118
Capiberibe 27. O imenso imóvel foi transformado em galpão multicultural com quinze ateliês e dez áreas comuns. Tem bistrô, laje, pista e piscina. Quatro rodas de samba residentes se alternam na agenda, com curadoria de Nathalia Guaglini e Adriana Lessa (à dir. na foto), que ainda conta com cineclube, exposições e aula de boxe para a comunidade. Rua Capiberibe, 27, Morro do Pinto. @capiberibe27
Galpão Bela Maré. Um dos endereços mais pulsantes da Zona Norte, o centro cultural dispõe de uma agenda recheada de ocupações, exposições, shows e clube de leitura, entre outras atividades. Rua Bittencourt Sampaio, 169, Maré. @galpaobelamare
Ocupação Iboru. O clima do projeto idealizado por Marcelo D2 e a esposa, Luiza Machado, no Centro da cidade é de sala de estar. A programação é mensal e conta com roda de samba autoral, feirinha de vinil, galeria de arte, sessões de cinema e até aula de história. Rua Sete de Setembro, 43, Centro. @ocupacao.iboru
Casa Savana. Com um ano de vida, o local já recebeu visitas ilustres como Caetano Veloso e Paula Lavigne, que prestigiaram o show de Mosquito. A programação, dedicada à cultura afro, vai das rodas de samba à gastronomia, comandada por Dandara Batista. Rua Camerino, 162, Gamboa. @casasavanarj
Casa Proeza. Inaugurado no início de agosto, o espaço integra o Reviver Cultural, dando novos ares a um casarão do fim do século XIX. Sob curadoria da designer Duda Ballesteros (à esq. na foto, com Bá Rosalinski e Lucas Bori) reúne mostras, loja-conceito de móveis, livros e peças de decoração, além de uma agenda animada de eventos. Rua do Ouvidor, 26, Centro. @casa_proeza