Futevôlei volta com tudo às areias cariocas e bate recorde em praticantes
A modalidade tem como estrela-mor uma carioca cheia de ginga em campo: Natalia Guitler
Das areias cariocas já despontaram altos modismos – de biquínis com todo tipo de recorte e estampado a esportes que ganharam
arenas mundo afora. Foi assim com o frescobol, nascido na faixa de Copacabana na década de 50, e com outros tantos que se seguiram, como a altinha e o futevôlei, esse último uma fusão de duas paixões nacionais que voltou ao topo das concorridas preferências locais.
Com mais de meio século de existência e popularizada por jogadores de futebol à procura de diversão à beira-mar, a modalidade,
que põe para trabalhar pernas e braços e envolve elevada coordenação motora, está surfando em uma novíssima onda, embalada por estes tempos pandêmicos e pela intensa busca por atividades ao ar livre, com distanciamento. Eis que, subitamente, nos 80 quilômetros de orla da cidade funcionam hoje cinquenta escolinhas legalizadas pela prefeitura com mais de 5 000 aprendizes, homens e mulheres – isso sem contar as várias redes informais de futevôlei espalhadas por aí.
Estima-se que o número de praticantes esteja em torno de 10 000, e sobe a cada dia. Atualmente jogado em mais de quarenta países, em nenhum outro ponto do planeta o futevôlei é tão relevante quanto no Brasil – e seu palco maior são justamente as praias do Rio. É verdade que ele vem evoluindo em lugares como Paraguai, Espanha e Israel, mas só aqui brilha um talento como o da carioca Natalia Guitler, 33 anos, que está para o futevôlei assim como a craque Marta, para o futebol feminino.
Ela alça o esporte a outro patamar. “É incrível ver a Natalia jogar”, diz Neymar, amigo e “parça” de jogo da moça. “Ela é muito técnica, detalhista e consegue acertar perfeitamente os movimentos”, avalia o atacante do Paris Saint- Germain, com quem Natalia ainda disputa partidas de teqball, cuja “quadra” é uma mesa semelhante à do tênis de mesa – esta uma invenção húngara que chegou ao Rio em 2019 (leia o quadro abaixo).
Campeã mundial, bicampeã sul-americana, hexacampeã brasileira e três vezes ungida Rainha da Praia, a estrela brasileira do futevôlei (entre homens e mulheres) abandonou o tênis profissional aos 20 anos e já acumula uma década de competições. Sua habilidade com os pés – e com a cabeça, o ombro, a coxa e também com o peito – fez dela presença constante nas partidas de grandes astros da bola da modalidade, que comporta duplas mistas. Em geral, Natalia leva a melhor. Neymar que o diga. Cara a cara, um contra um, deu ela.
O vídeo que a craque postou em sua página no Instagram, mostrando o passo a passo da vitória no teqball, acabou viralizando: contabilizou mais de 1 milhão de visualizações e virou assunto em programas esportivos e mesas-redondas de futebol na TV. “Um jogão”, lembra a carioca, filha de um casal de argentinos e caçula de quatro irmãos, todos homens. Foi o mais velho, aliás, que a apresentou ao bate-bola nas areias da Barra, quando Natalia se dedicava profissionalmente ao tênis e passava a maior parte do ano em Buenos Aires, treinando e competindo. “Me apaixonei imediatamente pelo futevôlei. Sol, praia, malhação, tudo ao mesmo tempo. Me encontrei nesse lifestyle”, conta.
Seus lances espetaculares servem de inspiração para a multidão que estreia nas areias. “O número de alunos por turma dobrou”, fala o ex-jogador e instrutor Leonardo Fialho, o Leo Tubarão, 41 anos. Dono de escolinhas em Ipanema e Copacabana, cada uma com três redes e
cerca de 120 inscritos, Leo vem a ser o criador daquela que é considerada a mais complexa jogada do futevôlei: o shark attack. Aos não iniciados, trata-se de uma cortada semelhante à do vôlei, só que executada com o pé. Surgiu quando o jogador sofreu uma lesão na coxa – com as dores que sentia ao fazer o movimento da bicicleta, ele passou a atacar de cima para baixo, usando a impulsão no lugar da explosão muscular. Ou, em linguajar mais simples, “é uma patada de cima para baixo, quase indefensável”, segundo o próprio autor do lance.
Procurado por todas as idades e perfis, o futevôlei tem presenciado uma multiplicação de mulheres com a bola nos pés. Se antes dessa nova onda elas respondiam por 20% das matrículas, agora já são quase metade dos novatos, de acordo com o mapeamento feito pela World Footvolley League, organização brasileira que promove o ranking internacional. Sensível à maré, a WFL escolheu o Rio para sediar a primeira etapa do circuito mundial deste ano, prevista para março, com atletas de sete países e 40 000 reais em prêmios – tudo de acordo com os protocolos da cartilha pandêmica. “Vamos conquistar o mundo nos firmando cada vez mais por aqui”, afirma o CEO Luiz Gomes, da WFL.
Esporte que alia condicionamento físico, movimentos quase acrobáticos e habilidades como tempo de bola e colocação em quadra, o futevôlei surgiu de um jeitinho carioca encontrado para driblar a repressão no auge da ditadura militar. Era 1965 quando o futebol à beira-mar foi proibido pelo governo. Aí, um grupo de jovens liderado pelo ex-jogador do Botafogo Octávio de Moraes, o Tatá, achou uma solução para dar um olé na polícia e continuar nas areias na altura da Rua Bolívar, em Copacabana.
Eles passaram a usar os espaços destinados ao vôlei, que seguia liberado, tocando a bola com os pés ou com a cabeça, sem deixar que atingisse o chão. No início, a brincadeira era praticada com cinco jogadores de cada lado; depois veio o jogo em duplas. À época chamado de “pévôlei”, o esporte rebatizado de futevôlei, exibido na Rio 2016 com a ambição de se tornar modalidade olímpica, avançou aos poucos, alcançando outras redes de Copacabana e desembarcando no Leme e em Ipanema em meados dos anos 70, com a adesão de jogadores estelares do velho e bom futebol.
A primeira onda do futevôlei remonta à década de 90, quando craques como Renato Gaúcho, Junior e Romário se arriscaram nas areias e deram visibilidade ao jogo. Curiosos se aglomeravam no calçadão de Ipanema para assistir a eles batendo bola na rede em frente à Vinicius de Moraes, até hoje um point do esporte. “Ali foi o auge, mas o que estamos observando agora, com a democratização da modalidade por toda a cidade, crianças se iniciando desde cedo e muitas mulheres entrando no jogo, se configura claramente uma segunda onda”, afirma Miguel Habib, 55 anos, quarenta de futevôlei e vinte à frente de uma escolinha na Barra.
Ex-parceiro de Romário – com quem venceu um dos maiores torneios disputados no Rio, logo depois da Copa do Mundo de 1994 -, Habib é outro que celebra o aumento no número de alunos de um ano para cá. Ele chama atenção ainda para a determinação da turma: a taxa de desistência entre os novos adeptos, motivados por diversão e pelo objetivo de manter a boa forma, é próxima de zero. “As pessoas acabam se viciando porque veem que é uma malhação ao mesmo tempo intensa e prazerosa”, analisa, lembrando que a melhor parte fica reservada para o final: o mergulho no mar.
Os benefícios para a saúde são vastos – a começar pela perda de calorias, 600 em uma hora, comparável a corrida, ciclismo e boxe. “Trabalha a parte cardiorrespiratória e a musculatura de abdômen, coxas e pernas. O exercício na areia exige muito dos músculos nessas áreas”, explica Jomar Souza, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, enfatizando que, nos dias de hoje, é bom tomar certos cuidados básicos do manual antivírus: “Nada de aproximação demais entre as duplas para combinar a estratégia nem
abraço na hora de comemorar o ponto.” “É uma atividade física completa. Sempre me fez muito bem e me deu força nas pernas”, atesta o veterano Renato Gaúcho.
Habitué das redes da orla desde a adolescência, a promoter e empresária Carol Sampaio resolveu ingressar na escolinha de Renato Adnet, o Dunga, assim que a prática de atividades na faixa de areia foi liberada na pandemia, em julho de 2020. A meta era ficar sarada e aprimorar a técnica. “Foi a melhor coisa que fiz. Nunca estive tão bem fisicamente”, garante Carol que, como 95% das mulheres, conta que não tem segurança suficiente para usar o peito no passe ou na recepção da bola.
O expert Leo Tubarão diz que o medo é compreensível, dada a anatomia feminina. “Quando a bola vem forte e pega no lugar errado, pode doer para valer”, esclarece. “Dá para contar nos dedos as que têm coragem de arriscar esse tipo de jogada.” Se existisse um GPS para indicar o local onde a bola deve se acomodar no caso da “peitada” (veja outras jogadas no quadro), ele apontaria para o osso esterno, no centro da caixa torácica – no caso das mulheres, precisamente entre os seios.
Natalia Guitler treinou, treinou, e hoje executa o lance com destreza, ainda que com um dificultador: a prótese de silicone. Dominar esse fundamento é mais um diferencial da atleta carioca, que já disputou partidas ao lado – ou contra – craques como Marcelo e Vinicius Junior (ambos do Real Madrid), Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Renato Gaúcho, Rivaldo e até o ídolo Zico, além de Neymar.
Mesmo com tantos predicados, Natalia não consegue hoje viver apenas do futevôlei, esporte semiamador onde ainda pesa a desigualdade de gênero: eles ganham o dobro do que elas ganham em prêmios. “Às vezes, chega a um terço”, frisa Natalia. Para se manter fazendo o que mais gosta, ela participa de eventos, clínicas e partidas de exibição de futevôlei e teqball país afora.
Também, com a pós-graduação em marketing esportivo, virou influenciadora digital – só no Instagram tem quase 2 milhões de seguidores. Prevista para março, a etapa do mundial no Rio pode representar um novo capítulo para o esporte, trazendo a equiparação da premiação em dinheiro entre os gêneros – uma promessa da organização. Enquanto isso, os cariocas se esbaldam nas areias e assim vão dando um voleio na pandemia.
Túnel do tempo
O futevôlei já tem mais de meio século de história
Anos 60 – No auge da ditadura, foram impostas regras rígidas para a prática de esportes na praia. Octávio de Moraes, o Tatá, um
ex-jogador do Botafogo, teve então a ideia de ocupar as quadras de vôlei próximas ao calçadão de Copacabana, onde ainda se podia jogar bola, e assim nasceu o futevôlei — como uma espécie de futebol disfarçado.
Anos 70 – À época chamada de “pévolei”, a modalidade migrou para as areias de Ipanema e se estabeleceu, em 1975, em frente à Rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes). Jogadores de futebol começam a aderir.
Anos 80 – Surgem os primeiros campeonatos e a transmissão das disputas na TV. Com uma ajudinha de ídolos como Maradona, que praticou em visita ao Rio, o futevôlei ganha popularidade nas praias. Mulheres começam a jogar, com destaque para cinco pioneiras: Tati, Marcella, Marcia, Soraya e Valéria.
Anos 90 – É criada a Federação Estadual do Rio. Os maiores circuitos, patrocinados por grandes marcas, passam a incluir mulheres. Renato Gaúcho e Romário atraem multidões ao calçadão para vê-los jogar.
Anos 2000 – As redes ficam mais baixas e são inventadas jogadas plásticas e agressivas, como o shark attack. O esporte começa a se expandir pelo mundo.
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