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Senhores dos mares

Depois de décadas no ostracismo, a indústria naval ressuscita e recupera a grandeza do passado dos estaleiros fluminenses, que agora travam uma acirrada disputa pelas encomendas de embarcações

Por Felipe Carneiro
Atualizado em 5 jun 2017, 14h24 - Publicado em 5 set 2012, 18h47
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naval-01.jpg (Redação Veja rio/)
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Quem pisa pela primeira vez em um estaleiro costuma ser acometido por um súbito complexo de inferioridade. Ali dentro tudo é grandioso e as linhas de montagem lidam com peças maiores que automóveis ou bancas de jornal. São centenas delas, soldadas em série por uma multidão de operários. As fagulhas dos maçaricos produzem tamanha luminosidade que todos precisam usar óculos – os visitantes são orientados a não olhar diretamente para a luz, sob o risco de ferir a retina. Poderosos guindastes carregam blocos e tubos de aço de um lado a outro, e um barulho metálico constante exige o uso de tapa-ouvidos para evitar danos à audição. Como consequência, os funcionários desenvolvem rapidamente uma peculiar habilidade para a leitura labial. A construção de um único navio- tanque de médio porte, com 183 metros de comprimento, exige 25?000 metros de tubos, 120?000 de cabos e 100?000 litros de tinta. Deserta e ainda oca, a embarcação pesa 15?000 toneladas. Para percorrer todos os seus tanques, casas de máquinas, camarotes, sistemas de bombas e sala de válvulas gastam-se três horas. No cais de Ponta da Areia, em Niterói, onde fica o mais antigo fabricante de navios do Brasil, o Mauá, há dois desses em fase final de produção, o José Alencar e o Rômulo Almeida. Um terceiro, ainda sem nome, está no dique seco com o casco sendo montado. Juntos, eles valem mais de meio bilhão de reais e marcam a ressurreição das velhas oficinas criadas em 1846 por Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá.

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O setor naval é hoje o que mais atrai investimentos na economia fluminense. Segundo dados da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), um grupo de quinze corporações e uma miríade de fornecedores movimentará quase 15,4 bilhões de reais até dezembro de 2014, volume que posiciona a construção de embarcações à frente de outras áreas também em franca expansão no estado, como siderurgia e petroquímica. Tamanha opulência está diretamente ligada à exploração de petróleo na camada pré-sal. Desde que o governo federal determinou, na década passada, que todo equipamento comprado ou arrendado pela Petrobras deveria ter um índice de nacionalização de pelo menos 65%, as encomendas não param de crescer. Nos próximos dois anos, a divisão de transportes da estatal, a Transpetro, despejará 9,5 bilhões de reais em pedidos às empresas, que, por sua vez, aplicarão mais 5,9 bilhões na modernização, ampliação e construção de novas instalações. “Vivemos um momento histórico, principalmente se levarmos em conta o marasmo que os estaleiros enfrentaram no passado”, orgulha-se Manuel Ribeiro, presidente do conselho de administração do grupo Synergy Shipyard, holding que controla o Mauá e também o Eisa, fabricante localizado no outro lado da baía, na Ilha do Governador.

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Com tanto dinheiro em jogo, é natural que o setor naval tenha chamado a atenção de conglomerados empresariais e investidores interessados em se expandir no ramo, mesmo aqueles com origem em outros segmentos. O Synergy, dono do Mauá, por exemplo, é mais conhecido por controlar a empresa aérea Avianca, apesar de ter negócios também no setor petrolífero. O estaleiro Aliança, tradicional construtor de Nitéroi, hoje é parte da Citrosuco, gigante paulista produtora de suco de laranja e dona de navios e terminais marítimos. O grupo EBX, de Eike Batista, conclui as obras de uma vasta instalação em São João da Barra, no norte do estado, onde produzirá simultaneamente seis navios e oito plataformas de exploração marítima. As empreiteiras Odebrecht, OAS e UTC Engenharia são parceiras da Petrobras no Estaleiro Inhaúma, no Caju. O fato é que nossos cais e diques secos andam animados como nunca, incluindo no agito a troca de petardos entre os construtores antigos e os novatos. “Estão chegando oportunistas que não têm ideia de como se constrói uma embarcação, e isso vai sair caro para a Petrobras”, torpedeia Gisela MacLaren, dona do estaleiro que leva seu sobrenome, fundado pelo avô em 1938. Em associação com outros parceiros, ela disputa uma nova área de produção pertencente ao falido estaleiro Caneco, hoje nas mãos do governo do estado. Os recém-chegados, por sua vez, contra-atacam. “Nós temos tudo que os velhos estaleiros não têm: muito espaço, equipamentos de última geração e expertise dos fabricantes mais avançados do mundo”, dispara Carlos Eduardo Bellot, diretor-presidente da OSX, braço petrolífero do conglomerado de Eike, associado à gigante empresa coreana Hyundai.

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A recuperação da indústria naval do Rio acontece depois de um longo e conturbado período de decadência que durou quase três décadas. Até o início dos anos 80, a região costeira entre Campos e Paraty concentrava 80% dos fabricantes de embarcações brasileiros. O país era considerado o segundo parque do mundo em volume de encomendas, perdendo apenas para o Japão. Quando a Petrobras começou a explorar petróleo no fundo do mar, no fim dos anos 60, foi daqui que saíram as primeiras plataformas, os rebocadores que as transportaram e os navios-tanque de apoio à operação. Os problemas econômicos nacionais, associados a escândalos de superfaturamento ocorridos na extinta Superintendência Nacional da Marinha Mercante (Sunamam), órgão que atuava no financiamento das operações de crédito para o setor, atingiram em cheio a indústria e começaram a afundá-la. No ápice da crise, em 1985, uma tragédia sintetizou o grau de desespero quando o então proprietário do Mauá, Paulo Ferraz, se matou com um tiro em seu escritório, deixando uma dívida de 290 milhões de dólares. Em vinte anos, o setor encolheu de 28?000 empregados para 1?300. As encomendas minguaram até desaparecer por completo.

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O baque foi tão violento que muitas fábricas foram simplesmente abandonadas à maresia. A decisão do governo de reativar a indústria naval se tornou a boia salva-vidas. No total, foram feitos pedidos de 49 embarcações para um parque industrial que não produzia nenhuma fazia mais de uma década. Como acontece com qualquer empresa que passa por um longo período de estagnação, a bonança veio encontrar galpões depauperados, com boa parte das máquinas vendida para saldar débitos ou com equipamentos obsoletos. Nenhuma empresa brasileira detinha, para início imediato, a capacidade para atender à demanda. “Todo o parque industrial precisava de um grande investimento em tecnologia para se adequar às nossas necessidades”, relembra Maurício Prado, gerente-geral do Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro. “É por esse motivo que os estaleiros, sejam novos ou antigos, estão passando por uma etapa de adaptação e abertura a novos investidores para alcançar um patamar de competitividade mais elevado.”

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O caso da mão de obra era particularmente sério. Em sua maior parte, os antigos funcionários haviam mudado de ramo, partindo para a metalurgia, a siderurgia e a construção civil. Para que a recuperação fosse bem-sucedida, era necessário não apenas trazer os profissionais que tinham partido como formar novos. E esse é outro ponto em que a disputa entre os estaleiros se torna agressiva. “Enquanto participava da construção da plataforma de Mexilhão, entre 2005 e 2011, recebi um monte de propostas”, conta o operário Paulo Cesar da Silva, 54 anos, que começou na montagem de navios aos 18 anos, desistiu de tudo no auge da crise e voltou recentemente. “Não aceitei. Meu sonho era ver a plataforma indo embora do cais.” A ex-vendedora de perfumes Sandra Nascimento, 34 anos, é um exemplo da batalha naval na disputa de talentos. Animada com a maré alta, abraçou a antiga profissão do pai, montador desde a década de 70, e tornou-se soldadora do Mauá, em 2008. Desde então, recebeu convites de concorrentes e foi promovida três vezes. O salário inicial, de 350 reais, hoje está em 2 700. “Minha mãe ficou tão animada que pediu para eu lhe pagar um curso, pois quer virar soldadora também”, relata Sandra, que tem mais dois irmãos trabalhando em estaleiros. Há dez anos, tamanho engajamento seria considerado uma loucura completa na sua família. Hoje é um dos efeitos positivos da volta dos antigos senhores dos mares.

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