Meu mundo caiu: pandemia aumenta casos de depressão no Rio
A boa notícia é que um mutirão de médicos e voluntários cariocas está trabalhando fortemente para tentar combater essas 'doenças da alma'
O isolamento social vem sendo uma arma potente para frear a expansão do novo coronavírus, mas viver em quarentena exige uma profunda adaptação e, para alguns, os efeitos colaterais são preocupantes e devem ser até mesmo tratados. De acordo com artigo da revista científica The Lancet que avaliou os impactos psicológicos da quarentena sobre pessoas que já atravessaram uma epidemia (H1N1, Sars, ebola, entre tantas outras), elas presentavam níveis maiores de stress psicológico, além de sintomas como ansiedade, insônia, irritabilidade, medo e desesperança quanto ao futuro. “A pandemia do novo coronavírus mal começou por aqui e já observamos um aumento na demanda por tratamentos psiquiátricos”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Hoje, cerca de 12 milhões de brasileiros e 8% dos moradores do Rio sofrem de depressão ó e esse é um grupo delicado, naturalmente mais vulnerável às limitações da pandemia. À liberdade perdida por ora com a quarentena, somam-se ainda uma abrupta mudança na rotina, que se estreitou de forma radical, e as incertezas em relação ao que está por vir.
Em algum grau, todos têm preocupações, momentos de angústia e tristeza, mas uns sentem mais o baque do que outros. Quem se vê no chamado grupo de risco da Covid-19, em geral, está mais sensível ó caso dos obesos, por exemplo, que, segundo o Ministério da Saúde, são, entre os menores de 60 anos, os que têm a maior probabilidade de enfrentar problemas ao contrair a doença. A consciência disso traz uma fase de terror emocional. “Entrei automaticamente para o grupo de risco e estou apavorada. Tenho até evitado ver TV para não me desesperar”, desabafa a fotógrafa Danielle Preciosa, de 33 anos e 138 quilos, que segue firme com remédios contra insônia e depressão e admite: só tem pensado em comer.
Os atendimentos on-line voltados para o público obeso que sofre de ansiedade e depressão aumentaram pelo menos 20% com o cenário da pandemia, segundo o Programa de Cirurgia Bariátrica do Estado do Rio. O coordenador, o médico Cid Pitombo, elenca dois fatores que ajudam a explicar a corrida por socorro nesta hora: o descontrole na busca por alimentos prazerosos (justamente quando há poucos estímulos à volta) e a insegurança de perder o emprego. “Os obesos são menos aceitos no mercado de trabalho em geral e, quando uma empresa decide fazer cortes, tornam-se alvos preferenciais”, explica Pitombo. O grupo sujeito a desenvolver doenças psiquiátricas, evidentemente, é muito maior.
O momento requer tanta atenção à saúde mental que, no fim de março, a Anvisa ampliou a quantidade de antidepressivos que cada paciente pode comprar por vez (categoria de remédio que já vinha crescendo, mesmo sem pandemia). Desde 2016, as vendas subiram 23% no país, com mulheres na faixa dos 40 anos liderando os pedidos.
Períodos de grandes crises ou desastres naturais são os mais propícios para uma evolução nos quadros de ansiedade e depressão ó não à toa, as taxas de suicídio logo depois do trágico rompimento da barreira em Brumadinho chamaram a atenção do Centro de Valorização da Vida (CVV). Associação civil sem fins lucrativos que há quase seis décadas trabalha como um pronto-socorro de assistência emocional no Rio, o grupo enviou dez voluntários para a cidade mineira após o desastre, que matou mais de 250 pessoas no início de 2019. Por cerca de dez dias, Maria das Graças Araújo liderou os esforços de prover amparo psicológico em meio à devastação. Ela, que há 25 anos faz atendimentos telefônicos do gênero, montou um “plantão de escuta” presencial nos arredores da área atingida. No epicentro da tragédia, a especialista percebeu que os moradores da cidadezinha, a 57 quilômetros de Belo Horizonte, estavam desesperados e traumatizados. “Eles tinham perdido tudo e não sabiam nem para onde ir”, conta.
O auxílio comandado por ela trouxe algum conforto, mas foi só desembarcar no Rio para que as más notícias começassem a chegar. “Ficamos sabendo que várias pessoas que conhecemos e com as quais conversamos acabaram dando fim à vida”, lembra a voluntária. Por questões de sigilo, o CVV não fornece detalhes de seus atendimentos, mas ajuda a traçar um quadro geral.
Desde o início da quarentena, o desespero de quem disca 188 (o número do CVV) em busca de auxílio emocional passa, em grande parte, não pela vontade de acabar com a própria vida, mas sim pelo temor de perdê-la de uma hora para outra. As pessoas ainda expressam a angústia da solidão. “Estão assustadas com o futuro, inseguras em relação à possibilidade de ficar sem emprego, e querem falar da dor do confinamento. Algumas estão se sentindo extremamente solitárias”, diz Maria das Graças.
Na pós-pandemia, preocupa a entrada em cena de um fenômeno vastamente estudado na área da saúde mental: o transtorno de stress pós-traumático, distúrbio caracterizado pela dificuldade em se recuperar depois de vivenciar (ou mesmo testemunhar) um acontecimento assustador. As pessoas precisam aprender a prosseguir com a vida após ela ter virado do avesso.
A inédita realidade de escala global impõe um desafio e tanto para a medicina. “O período é verdadeiramente atípico”, resume a coordenadora de psicologia do Hospital Quinta Dor e da Santa Casa de Misericórdia do Rio, Glauce Corrêa. Ela lidera um grupo de profissionais que vêm prestando atendimentos terapêuticos on-line. A procura é tanta que estão todos sobrecarregados, mas mais ativos do que nunca para combater as doenças da alma que o novo coronavírus perigosamente ameaça disseminar. O cinturão de cientistas que se vê formar contra elas no Rio de Janeiro é um esforço mais do que necessário.