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Atravessando o deserto: comerciantes do Saara reagem à crise

Como o animado polo de comércio de rua no Centro, não só não se deixou sucumbir à crise pela pandemia, mas soube aprender com ela

Por Pedro Tinoco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 23 fev 2021, 16h37 - Publicado em 19 fev 2021, 06h00
Comerciante em frente a lojas
Leonardo Zonenschein, da Dimona: operação internacional foi iniciada no meio da pandemia (Léo Lemos/Veja Rio)
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Avenida Presidente Vargas, Praça da República, Praça Tiradentes e Rua dos Andradas delimitam um pujante conjunto de doze ruas no centro histórico do Rio. No eixo principal, onde fica a Rua da Alfândega, comerciantes ingleses se acomodaram logo após a abertura dos portos, em 1808, mas não permaneceram por muito tempo.

Foi só a partir do fim do século XIX que começaram a aportar por lá cristãos, muçulmanos e judeus oriundos do antigo Império Turco-Otomano. Durante a II Guerra e depois do confronto, um grande contingente de judeus do Leste Europeu somou-se à babel local.

Os chineses fariam variar ainda mais o sotaque a partir dos anos 1990. Nos sobrados, com negócios no térreo e residência no piso superior, a vocação comercial da região tomou forma, dando lugar ao principal shopping a céu aberto da cidade, a Saara, que hoje concentra mais de 900 lojas de todas as especialidades.

Se por um lado aquelas bandas da cidade penaram com a pandemia, tendo as portas fechadas por 100 dias e as vendas reduzidas em 95% no primeiro semestre de 2020, elas também revelaram belos exemplos de superação: três famosas marcas nascidas e criadas ali, as tradicionais Caçula, Casas Pedro e Dimona, encontraram espaço para crescer nesses meses de provação. A saída para empresas mundo afora enfrentarem a crise provocada pela Covid-19 passou pelo emprego de novas tecnologias: um punhado delas abraçou o universo digital.

Mas a necessidade de avançar para sobreviver as levou ainda mais longe, incluindo a aquisição de equipamentos e até sua expansão. Em setembro passado, a Dimona trouxe de Israel máquinas de impressão em silk HD, com velocidade de produção três vezes maior do que a da geração anterior, já instaladas na fábrica de Três Rios.

“Essas máquinas têm ainda menor impacto ambiental, usam pigmentos biodegradáveis e dispensam a água na produção”, enumera com uma ponta de orgulho Leonardo Zonenschein, diretor comercial do negócio especializado em personalização de camisetas.

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A compra estava definida antes do aparecimento do novo coronavírus, assim como as mudanças nos processos digitais da empresa – aí veio a pandemia e acelerou tudo. Novidade mesmo foi a decisão de dobrar a aposta: o mesmíssimo equipamento recém-chegado ao Rio foi encomendado para uma filial nos Estados Unidos.

“Decidimos montar a operação em Miami em junho. Três meses depois, em setembro, fizemos a primeira camiseta em território americano”, conta Zonenschein.

O investimento em máquinas, o desenvolvimento digital e a internacionalização da marca que brotou em uma portinhola da Rua Senhor dos Passos fazem parte de um movimento de produção on demand, ou sob encomenda, sem margem para desperdício. Essa é uma tendência, aliás, que vem se consolidando em variados setores, do streaming do Netflix às entregas de comida do iFood, e acompanha a onda da personalização, em que o cliente acessa ou contrata o serviço de onde precisa e na hora que quiser.

Deu certo para a Dimona, onde o faturamento subiu 50% e o novo maquinário não para. Na mesma direção, outra empresa made in Saara, a Caçula, prepara a estreia de sua plataforma de vendas on-line. O negócio de produtos variados – de papelaria e decoração a suprimentos de informática e limpeza – começará ofertando no meio digital 25% dos cerca de 40 000 itens disponíveis nas gôndolas.

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“Estamos estudando modelos on-line há quatro anos e a pandemia acabou sendo a gota d’água para que a gente entrasse nesse mundo”, explica Bruna Castro, diretora de marketing da Caçula e filha do fundador, Marco Antônio Castro.

O crescimento dessas marcas envolveu também uma corajosa expansão física das redes, no velho estilo tijolo e argamassa. Mesmo em tempo de e-commerce em alta, a venda in loco ainda representa para muitos o grosso do faturamento. A Caçula, espalhada pelos estados do Rio, de Minas e do Espírito Santo, chegou à 26ª unidade há dois meses, com a abertura de uma filial em Angra dos Reis.

Fachada da loja Caçula
Novos pontos: oito lojas abertas e mais dez nos planos da Caçula para 2021 (Arquivo/Reprodução)

Desde setembro, no processo de retomada, a Casas Pedro, hoje uma rede com mais de quarenta endereços na cidade, ganhou oito novas unidades em território fluminense. “Tivemos perda financeira de 15% no início, mas conseguimos virar o jogo ampliando nossas frentes”, comemora Felipe Mussalem, neto do criador do negócio de produtos árabes e atualmente à frente da empreitada, que, como os vizinhos, também aderiu às vendas on-line durante a crise pandêmica.

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No negócio, que deve parte de seu charme aos ares de armazém das antigas, o movimento virtual saltou das cinquenta entregas por dia para 3 000, proporcionando 18% do faturamento da empresa ó a loja chegou a ser uma das mais procuradas no iFood.

Produtos à granel
Foco on-line: as vendas de produtos saltaram de cinquenta para 3 000 por dia na Casas Pedro (Divulgação/Divulgação)

Além de nascidas na Saara (sigla para Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), Dimona, Casas Pedro e Caçula guardam em comum a administração familiar e a trajetória aguerrida de seus fundadores. Todos escolheram justamente o reduto de imigrantes no Centro para recomeçar suas histórias.

Nos anos 20 do século passado, enquanto a região passava por uma radical mudança urbanística iniciada pelo prefeito Pereira Passos, Betrus Mussalem, vindo do Líbano com a esposa, Olga, alojou-se em um sobrado. No térreo, a família abriu uma pequena venda com frutas.

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Em 1932, o lugar, informalmente conhecido como a “casa do Pedro” (tradução gaiata de Betrus para o português), passou a diversificar seus produtos, oferecendo frutas secas e itens de origem árabe, como temperos e quitutes típicos, carros-chefe da rede até os dias atuais.

Foto antiga da Avenida Passos
A região nos anos 20: os primeiros comerciantes árabes se instalavam no local (Acervo IMS/Reprodução)

O polonês Seweryn Blumberg desembarcou no Rio na década de 50, aos 20 e poucos anos. Deu duro como mascate, batendo de porta em porta nos morros do Rio. Aqui, casou-se com Sarina e trabalhou com a família da mulher, até virar ele próprio empreendedor. O CNPJ da Dimona, que criou em 1985, segue o mesmo. O mais novo do trio de fundadores é o brasileiro Marco Antônio Castro, 64 anos, o dono da Caçula. Ele deixou Rio Novo, em Minas Gerais, aos 14. Passou por São Paulo e Resende.

Vendeu enciclopédias e chave de roda (sim, houve um tempo em que os carros vinham sem essa ferramenta para trocar o pneu), antes de tentar a vida no Rio e inaugurar a primeira loja, na Rua da Alfândega, 318, em 1982. Hoje, Marco Antônio Castro toca um império do varejo que emprega 3000 funcionários e planeja abrir mais dez unidades até o fim do ano. Que neste 2021 ele e os outros continuem a demonstrar capacidade para se reinventar.

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