Continua após publicidade

Filho de Migliaccio: ‘Ele fez de sua morte um protesto, um ato político’

A despedida emocionada do jornalista Marcelo Migliaccio, de 52 anos, filho do ator Flávio, que há um mês tirou a própria vida

Por Marcelo Migliaccio
Atualizado em 5 jun 2020, 18h07 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00
Marcelo sobre o pai: "Dramático, preferiu a corda no pescoço ao coquetel de pílulas" (Acervo Pessoal/Divulgação)
Continua após publicidade

Eu deveria ter uns 9 ou 10 anos quando meu pai chegou em casa com um tremendo machucado na canela. O ferimento era feio, daqueles que a gente sente dor só de olhar. Perguntei o que havia acontecido e ele contou que se machucara durante a gravação de uma cena, deixando escapar com um certo orgulho que, mesmo assim, não tinha interrompido a gravação. Suportou a dor até que o diretor dissesse “corta”. Dias depois, por acaso, ele estava ao meu lado quando a referida cena foi ao ar.

+ Fake News: agências de notícias combatem pandemia de desinformação

Era algo banal, em que o personagem dele, Xerife, subia correndo na capota da popular (na época) Camicleta, uma geringonça cheia de ferros velhos pendurados. Ele me mostrou exatamente o momento em que havia arrebentado a canela e eu fiquei surpreso. Já existia videoteipe na televisão e nada impediria que ele parasse a gravação, não haveria prejuízo e muito menos reclamações. Mas ele, focalizado de costas e a distância, suportou a dor, imóvel, até o esdrúxulo veículo sair de quadro.

Naquele momento, Flávio Migliaccio me ensinou o que é amar e respeitar uma profissão. Mais ou menos na mesma época, outro de meus mestres, Raul Seixas, lançou a música A Lei, em que dizia que “todo homem tem direito de morrer como e quando quiser”. Jamais eu imaginaria que quase cinquenta anos depois meu pai interromperia deliberadamente sua própria vida, numa decisão filosófica que eu tenho o dever e a obrigação de respeitar.

+ Para receber VEJA RIO em casa, clique aqui

Flávio, assim como Raul, que também decidiu o momento de morrer deixando de tomar os medicamentos para diabetes, dedicou sua obra a alimentar o sonho de uma sociedade diferente da nossa. Seu personagem preferido, o Tio Maneco, incentivava as crianças a respeitar a natureza, ser pacifistas e a se interessar mais pelo saber do que pelo consumo. Tanto o compositor baiano quanto o ator paulista se frustraram.

Numa de nossas últimas conversas, eu tentava, mais uma vez em vão, motivar aquele homem cansado, desiludido com a avalanche fascista que toma conta do planeta. “O mundo está um lixo”, ele me disse. Dias depois, ou antes, não me lembro, ele me deu outra razão para justificar seu desejo de sair definitivamente de cena: “Já não escuto direito, minha vista está falhando, a memória também. Daqui para frente só vai piorar. Já vivi demais. Oitenta e cinco anos. Chega.”

Continua após a publicidade

Fiz o que pude. Levei-o a quatro psiquiatras, mas ele não aguentou as bombas antidepressivas. Os psicólogos, ele sempre recusou. Dizia que passaria horas e horas falando, e o profissional jamais conheceria Flávio Migliaccio melhor que o próprio. Usei todos os meus argumentos, mas meu pai não queria mais jogar. Era uma decisão tomada, acho que muitos anos antes daquele domingo em que ele disse que daria uma caminhada pelo bairro e sumiu. Como não voltava, saí pelas ruas à sua procura. Como a ausência se alongava, liguei para o sítio, distante 84 quilômetros de onde eu estava.

O caseiro confirmou. Meu pai havia chamado um táxi para ir até lá escrever a última página de um roteiro cujo final nem eu nem minha mãe, de 84 anos, pudemos modificar. Abusado num seminário e expulso por resistir ao assédio do padre, Flávio desacreditou de Deus para sempre. Sua última peça mostra-o questionando o Altíssimo, com quem se encontra pessoalmente em seu quarto durante uma madrugada.

Noticiado seu suicídio, alguns evangélicos correram para atribuir o fato às “blasfêmias” ditas por ele durante o espetáculo teatral. Felizmente foram poucos. A grande maioria das pessoas, como eu, respeitou a decisão dele. Houve até quem confessasse invejar sua coragem. Descendente de italianos e fã do cinema neorrealista, Flávio fez de sua morte um protesto, um ato político. Dramático, preferiu a corda no pescoço ao coquetel de pílulas.

Continua após a publicidade

Só não posso concordar com uma frase escrita por ele na carta de despedida, a de que seus 85 anos não valeram de nada. Para muita gente, e especialmente para mim, cada olhar, cada sorriso e cada lágrima foram fundamentais. Do meu nascimento até a última vez em que o vi naquela tarde de domingo, sempre me orgulhei do meu pai. Mesmo ele tendo saído sem se despedir de mim. Passou por onde eu estava na sala sem me olhar, bateu levemente duas vezes nas costas da minha mãe e disse, já consciente do que iria fazer: “Eu vou andar, tchau, tchau”.

 

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de Rio de Janeiro

a partir de 35,60/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.