Cariocas sem documentos são privados de direitos básicos
Sem certidão de nascimento, milhares de pessoas não têm acesso à educação, à saúde, às políticas sociais e ao voto
Filho de um carpinteiro e de uma empregada doméstica, Danilo Caldeira de França nasceu em uma casa de saúde no bairro Jabour, na Zona Oeste do Rio, na madrugada de 11 de setembro de 1995. Na ocasião, a rotina atribulada de uma família com dez filhos e poucos recursos levou os pais a adiar a ida ao cartório para registrar o então bebê. Meses depois, uma enchente que assolou o Rio no verão de 1996 destruiu praticamente tudo o que a família tinha. Entre as perdas estava o documento fornecido pela maternidade, necessário para a emissão da certidão de nascimento do menino. Quando tentaram tirar uma segunda via, os pais depararam com mais um problema: o hospital onde ele nascera havia fechado as portas sem deixar nenhum rastro dos prontuários. Começava ali um pesadelo digno dos romances de Franz Kafka que ainda hoje assombra Danilo. Sem certidão de nascimento, ele só conseguiu vaga em uma escola pública depois de sua mãe implorar pela matrícula — exceção concedida em caráter emergencial, mas que durou até o momento em que Danilo abandonou os estudos, aos 16 anos de idade, no 6º ano do ensino fundamental. Urna eleitoral ele só conhece das imagens de TV, da mesma forma que nunca passou perto de uma Junta de Alistamento Militar. Não pode aprender a dirigir e, se precisar fazer qualquer viagem aérea, não será possível embarcar, porque não tem RG nem algo que o valha. Ele evita sair à noite, por medo de ser parado pela polícia, ser preso e não conseguir se defender. A situação é tão complicada que ele nem sequer pode registrar em seu nome sua filha, nascida há dois meses. “Oficialmente, eu não existo”, diz o jovem.
Danilo faz parte de uma legião de invisíveis perante o Estado, pessoas que, como ele, são privadas dos direitos básicos de todo cidadão, como o acesso à educação, à assistência médica e aos programas sociais. Elas também não podem ter propriedades, fazer um crediário, abrir conta bancária nem comprar um chip de celular. Nem sequer podem solicitar uma ligação de energia elétrica em seu nome — que em última análise também é uma abstração, uma vez que não há registro válido de sua existência. E, quando morrem, ao ser sepultadas, são categorizadas como indigentes, sem a emissão do atestado de óbito. Por mais bizarras que possam parecer, tais situações são mais comuns do que se imagina. Não existem dados nem estimativas exatas sobre a quantidade de pessoas sem documentos que vivem hoje no Rio, mas, ao tomar como base os indicadores aferidos pelo IBGE, acredita-se que existam no mínimo 30 000 fluminenses sem registro. Ainda assim, é um número subestimado, pois ele considera apenas crianças que tinham até 10 anos de idade no último censo, em 2010. Acima dessa faixa etária, entra-se no território da especulação. Um exemplo: calcula-se que 90% dos moradores de rua estejam nessa condição, o que significa um contingente de pouco mais 5 500 indivíduos. “É uma tragédia ainda termos tanta gente condenada à invisibilidade social. São pessoas que não têm cidadania dentro do próprio país”, afirma a juíza Raquel Chrispino, lotada na 1ª Vara de Família de São João de Meriti, que criou um projeto inédito de acesso ao registro tardio e à documentação básica, no Tribunal de Justiça do Rio. Embora o foco principal seja quem jamais teve algum registro, como Danilo, que procurou o serviço há duas semanas, o programa também recebe pessoas cujos documentos apresentam erros ou foram perdidos. “Além dos problemas de sub-registro dentro de nossas próprias fronteiras, acabamos resolvendo os de gente que vem de outros estados”, diz a juíza.
Sede da corte portuguesa, do governo imperial e posteriormente federal, o Rio tem tradição como polo de atração de forasteiros em busca de melhores condições de vida. Muitas dessas pessoas têm como origem regiões onde os registros em cartório e a emissão de documentos são extremamente precários, como as zonas rurais do Norte e do Nordeste do país. Uma vez na capital fluminense, empregam-se em atividades informais, alojam-se em moradias precárias e só se dão conta das dificuldades decorrentes da falta de documentação quando surge um problema concreto, como a necessidade de um tratamento médico ou o registro de um filho. Entretanto, há quem viva por décadas sem nenhum certificado legal. Capixaba, o pedreiro Aroldo de Oliveira, de 80 anos, veio para o Rio na década de 40, depois de fugir de casa com um irmão mais velho. Uma vez na cidade, perdeu o contato com a família. Morador do Rio Comprido, ele nunca foi à escola nem teve um emprego formal. Sempre viveu de bicos, amparado pela informalidade que faz prosperar o subemprego — dados de 2013 do IBGE apontam a existência de cerca de 840 000 trabalhadores sem nenhum tipo de registro na cidade. Com isso, Aroldo nunca sentiu necessidade de tirar documentos. Nem mesmo depois de ter sido preso durante o regime militar, ao ser abordado na rua por policiais. Na certidão dos três filhos, por exemplo, não consta o seu nome, apenas o da mãe. Nos últimos tempos, entretanto, ele começou a preocupar-se com a sua situação. “Passei por muita coisa na vida, mas quero ser enterrado com dignidade”, diz ele.
O processo de regularização é complexo, trabalhoso e caro, pois implica deslocamento entre diversas repartições, pagamento de taxas de cartório e, não raro, remessa de documentos de porte registrado por via postal. Com o objetivo de erradicar a exclusão documental no Rio, o Tribunal de Justiça mantém um mutirão que dá expediente em pontos estratégicos do estado. Trata-se de um ônibus adaptado para o atendimento feito por juízes, promotores e defensores. Cada caso é analisado detalhadamente e passa por uma investigação de dados. Para garantir a autenticidade da identificação, a equipe faz buscas de possíveis registros em maternidades, cartórios e, eventualmente, obtém informações biométricas, como impressões digitais. “É um processo criterioso que não pode dar margem a dúvidas ou erros”, diz Lívia Marinho, chefe do Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-Registro e à Busca de Certidões (Sepec), do TJ. Em média o processo para a autorização de uma certidão de nascimento nessas condições leva dois meses. Caso não seja possível rastrear a origem e se esgotem todas as possibilidades, a equipe do TJ concede um documento que autoriza a emissão de uma certidão de nascimento nova.
O problema da falta de registro civil no Rio remonta ao fim do século XIX. Historiadores costumam apontar como um episódio emblemático a destruição sistemática de todos os arquivos destinados a registrar a entrada e a propriedade dos escravos, logo após a promulgação da Lei Áurea, em 1888. Tal medida era uma estratégia deliberada para impedir pedidos de indenização ao governo por parte dos ex-proprietários. Com ela, milhares de pessoas passaram a viver sem nenhum registro formal, uma situação que se perpetuou por várias gerações, principalmente no interior do estado. O fato é que, ainda hoje, a falta de documentos deflagra um ciclo que envolve pais e filhos. Jeanne Crysnan dos Santos, de 18 anos, foi abandonada pela mãe, criada pelo pai e depois por uma tia a partir dos 9 anos. Seu único documento era a cópia xerox de uma certidão de nascimento, que lhe franqueou acesso à escola. Ao tentar tirar o RG, aos 15 anos, acabou descobrindo que o papel era falso, pois não existia nenhum registro compatível nos livros do tabelião. “Minha sogra, que foi buscar o documento no cartório, recebeu ordem de prisão e foi levada para a delegacia. Deu um trabalho enorme explicar tudo”, recorda. Sem nenhum documento em mãos, ela até hoje não conseguiu registrar os filhos Ana Alexia, de 3 anos, e Samuel, de 3 meses. Para complicar, o bebê nasceu com um problema cardíaco, precisa de acompanhamento médico e remédios controlados. “Não consigo que meu filho continue no tratamento sem os registros”, explica.
A falta de documentação é um reflexo da pobreza e da baixa escolaridade. Em todo o mundo, o continente africano tem as piores taxas de pessoas sem registro de nascimento. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em torno de 70% das crianças dali não são registradas. Na outra ponta está a Escandinávia, que exibe taxas de registro de praticamente 100%. Isso se deve, em boa parte, a uma medida simples: os bebês já saem da maternidade com a certidão de nascimento. Por aqui, até existem casas de saúde que oferecem um serviço similar, com tabeliões de plantão, mas o número ainda está longe do ideal. Em todo o Brasil, de acordo com o último censo, há 600 000 crianças que não existem oficialmente. No Rio, a maior incidência dessa população “invisível” se encontra na Zona Oeste. É lá que vive Mariana de Abreu Santana, de 15 anos, que não sabe ler nem escrever. Após a morte de sua mãe, quando ainda era bebê, o pai assumiu a guarda da menina, mas nunca providenciou o registro. “Eu me sinto muito mal com minha situação. Quero trabalhar, estudar, ganhar meu dinheiro e cuidar da minha vida”, diz a jovem, que vive em Senador Camará e exibe com orgulho o atestado concedido pela Justiça que lhe garantiu finalmente o direito à sua certidão. Tal caminho já foi trilhado por Bernadete Conceição da Silva, 16 anos, moradora de Santa Cruz, que com sua documentação expedida no fim do ano passado cursa o 1º ano do ensino médio. Nascida em uma família de oito irmãos, todos até pouco tempo sem registro, ela quer ser advogada. “O problema em casa era tão sério que a gente não tinha nem luz. Ninguém tinha documento para abrir a conta”, recorda, bem-humorada. Além de ter energia elétrica, a família agora passou a existir oficialmente.