A cada chuva, a agonia: os cariocas que se recusam a deixar área de risco
Algumas delas argumentam à Defensoria Pública que o auxílio habitacional, recebido nessas circunstâncias, não compensa a saída das residências
Toda hora que alguém da Defesa Civil bate à porta, a resposta de Maria do Socorro é a mesma: “Daqui, eu não saio. Não tenho para onde ir”, justifica. Embora a residência de dois cômodos, habitada por mais quatro pessoas, fique à beira de uma encosta na Rocinha, a família da doméstica prefere conviver com o medo, a cada temporal, do que passar por dissabores em abrigos provisórios e casas de vizinhos. Tiveram de sair às pressas pelo menos três vezes, mas o pequeno imóvel resiste.
Da última vez, conta chorosa, hospedou-se num pequeno quarto cedido por uma amiga. Ela, a filha, o filho, a neta e o neto agruparam-se no refúgio provisório. A convivência não deu certo e Maria do Socorro novamente voltou para casa. Vivendo em área de risco, ela diz que não pretende sair de lá, mesmo que a Defesa Civil peça para ela ficar num abrigo.
Desde a chuvarada de janeiro, a Fundação Geo-Rio acumula mais de quinze obras relacionadas a contenção de encostas e serviços afins. Também opera, em conjunto com o Alerta Rio, um sistema sonoro para orientar moradores a deixarem residências ameaçadas por temporais. A iniciativa ajuda a mapear imóveis em áreas sob o perigo de deslizamento de terra.
Quando são identificadas construções assim, a prefeitura precisa remover os moradores. Várias famílias, no entanto, resistem à mudança. Temem adversidades ainda piores. Algumas delas argumentam à Defensoria Pública que o auxílio habitacional, recebido nessas circunstâncias, não compensa a saída das residências. Em certos casos, a Defensoria e o Ministério Público condicionam a remoção ao acesso a uma nova moradia.
Por outro lado, o déficit habitacional do Rio dificulta a realocação rápida de famílias desalojadas, avaliam urbanistas. Auxílios de custo não evitam batalhas jurídicas atrás de uma solução satisfatória para o complexo problema. Não raramente, a prefeitura busca revogar ordens judiciais de manutenção dos moradores nas suas casas, mesmo vizinhas ao perigo. O risco à vida impõe a necessidade da remoção.
Especialistas em habitação reconhecem que casos como o de Maria do Socorro envolvem aspectos sociais, urbanísticos, geológicos, geográficos e econômicos.
Famílias desalojadas ou desabrigadas recebem o Auxílio Habitacional Temporário, que corresponde a uma ajuda de 400 reais para locação imobiliária provisória. A verba destina-se, em especial, a vítimas de tragédia decorrente de chuva ou de intervenção urbana.
O auxílio não se estende, em princípio, a moradores em áreas de risco, mas, às vezes, a prefeitura libera o pagamento para atenuar a aflição de cariocas assombrados por esse perigo, mesmo que não esteja previsto em decreto.
O presidente da Federação das Favelas do Rio de Janeiro, David Gomes, o Derê, ressalta que “ninguém mora em área de risco porque quer, porque gosta, mas porque não tem para onde ir”. A saída, enfatizam urbanistas, exige o crescimento de investimento público e de infraestrutura nessas regiões.
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O historiador David Gomes, que participou de uma audiência pública sobre o assunto na Câmara Municipal, aponta uma raiz socioeconômica da ocupação desordenada: “No Brasil, há área de pobre e área de rico. Muitas regiões ocupadas por pretos e pobres eram consideradas de risco porque não tinham investimento público. Depois que os pretos e pobres saíram, passaram a ser ocupadas por ricos e ganharam infraestrutura. É o caso de trechos, por exemplo, da Lagoa e de outros bairros da Zona Sul”, resume. “A Defesa Civil bate na tecla de que vários moradores em áreas de risco não saem desses lugares mesmo com alternativas para morar. Não acredito que a análise esteja correta. Óbvio que se essas pessoas tivessem moradia digna, elas se mudariam. Mas é claro que ninguém vai largar a casa para morar na rua ou debaixo da ponte”, pondera.
Medidas para prevenir ou atenuar tragédias decorrentes de tempestades e fenômenos climáticos extremos, cada vez mais recorrentes, incluem obras para conter deslizamentos e alagamentos. É o caso da drenagem feita pela Geo-Rio na Estrada da Pedra, em Guaratiba, Zona Oeste da cidade. A obra estancou os alagamentos e os consequentes transtornos de moradores obrigados a deixar suas casas.
Contenção de encostas revela-se igualmente importante para reduzir o risco de deslizamentos em diversos pontos da cidade. Desde a sua fundação, em 1966, a Geo-Rio realizou mais de 5000 obras do gênero.
Anderson de Andrade Marins, presidente da instituição, recorda que, em 2019, uma chuva intensa na capital fluminense desencadeou 31 decretos de calamidade pública, que desdobraram-se num aporte federal de 90 milhões de reais para ações emergenciais.
Marins salienta que as mudanças climáticas demandam progressivos investimentos e ajustes estruturais relativos a gestão de risco. São várias etapas, a começar pelo contato da Defesa Civil com a Geo-Rio: “Só então a nossa equipe vai até o local para fazer o diagnóstico da área, o mapa geográfico e geotécnico das áreas de risco”, explica.
Os principais mapeamentos englobam a Serra da Misericórdia e o Maciço da Tijuca, maciços ocupados por favelas.
A geóloga e pesquisadora Renata Borelli, pós-graduada em planejamento urbano pela Uerj, observa que traços geográficos do Rio contribuem para a quantidade relativamente alta de áreas de risco. Parte do município, pontua a pesquisadora, está sobre restingas, manguezais e terrenos pantanosos, cercada por lagoas e rios, e em faixas espremidas entre o mar e os maciços com encostas íngremes.
A tais características, somam-se bairros cujos aterros invadiram áreas que pertenciam, de certa forma, ao mar, aos rios, às lagoas. Há décadas encostas, beiras de rios e de lagoas sofrem com desmatamento e expansão urbana desordenada, concentrando moradias precárias, o que aumenta os riscos atrelados a incidência de chuvas torrenciais, especialmente no verão.
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Construções clandestinas em áreas de risco refletem, entre outros aspectos, o alto custo da moradia em regiões com mais oportunidades de emprego. Para ficarem próximos dos seus locais de trabalho, cariocas de baixo poder aquisitivo passaram a ocupar irregularmente locais como encostas, morros e lugares mais suscetíveis a enchentes.
Cerca de 6% da população da capital fluminense vive em áreas de risco, estima o Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Moradora do bairro Picape, na Pavuna, Zona Norte, Daiana Silva está entre os mais de 400000 moradores nessas condições. A casa que divide com quatro dos seis filhos foi alagada em janeiro. Com a chuva intensa, o valão ao lado transbordou e a água invadiu a residência de Daiana, que está desempregada.
Ela relata que nenhum órgão do governo foi socorrê-la e só superou o transtorno com a ajuda dos vizinhos e da Federação das Favelas.
Aos 37 anos, ela conta que enfrenta enchentes com frequência. “Certa vez a água chegou até o pescoço. Tive medo de ficar doente, contaminada pela água suja”, lembra. Ainda assim, diz que se recusará a sair de casa se a Defesa Civil pedir para deixá-la. Receia não conseguir uma moradia segura.
A vizinha Priscila Gomes, de 40 anos, divide o quintal com Daiana. Mãe de duas meninas, ela também se aflige com as tempestades. “Estão cada vez mais frequentes e trazem medo, insegurança. Na chuva deste ano, perdi todos os móveis”. Priscila recompôs a vida graças à solidariedade dos amigos. Agoniada pela sensação de impotência, ela ecoa uma aflição comum a outros tantos cariocas e brasileiros: ”Até quando vamos sofrer com isso? Perder tudo, reconstruir. É uma novela sem fim”.
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Este conteúdo integra o conjunto de reportagens em texto, áudio e vídeo feitas por estudantes de jornalismo da PUC-Rio, sob orientação dos professores Adriana Ferreira, Alexandre Carauta, Chico Otavio, Creso Soares Jr., Giovanni Faria e Luís Nachbin.
A edição no site de VEJA Rio é de Marcela Capobianco.