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Carioca ganha uma mãe de presente graças à adoção internacional

Com três filhos adotivos, a italiana Irene Zagni é o retrato dos estrangeiros que adotam jovens que não teriam chance de um futuro melhor por aqui

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 13 Maio 2017, 10h15 - Publicado em 13 Maio 2017, 10h15
Matheus, Jadson, Irene e Renan: os meninos que antes viviam nas ruas, abrigos e favelas hoje moram em Verona (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Estatísticas, para o bem e para o mal, costumam ser usadas para contrapor a frieza crua dos números a embates, opiniões e relativizações. Pelos cálculos da Justiça brasileira, uma criança negra, do sexo masculino e com histórico familiar conturbado costuma ser relegada a segunda ou terceira opção durante um processo de adoção. Se ela passar dos 10 anos, então, a chance cai praticamente para zero. No entanto, até mesmo na aritmética cruel do abandono infantil, pequenos milagres acon­tecem. É o caso do adolescente Jadson, de 14 anos. Neste domingo, depois de muitos anos, ele vai comemorar o Dia das Mães ao lado de alguém que, de fato, poderá chamar assim. E isso a 9 000 quilômetros de distância do casebre condenado pela Defesa Civil onde foi criado, na favela Morro do Sapê, em Vaz Lobo, na Zona Norte. Desde a última sexta (12), Jadson Bonizzato (esse é seu novo sobrenome), agora um cidadão italiano e da Comunidade Europeia, vive em Verona, eternizada por William Shakespeare em Romeu e Julieta, ao lado da nova mamma, a italiana Irene Zagni. Médica, de 45 anos, ela é casada com o construtor Emanuele Bonizzato, de 53. Ambos acolheram Jadson como seu filho caçula, ma non troppo, na agradável cidade do norte da Itália. “É inexplicável o que eu e meu marido sentimos ao vê-lo. Foi um verdadeiro amor à primeira vista”, descreveu Irene à reportagem de VEJA RIO, que acompanhou o processo de adaptação do jovem aos novos pais, realizado durante trinta dias no Rio.

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Os garotos com o pai, Emanuele Bonizzato (à dir.), em uma audiência antes da partida do Rio: a família faz questão de manter vínculos com o Brasil (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Risonho, corpulento, com 1,78 metro de altura e extremamente tímido, Jadson conhece bem uma realidade da qual a maioria dos cariocas só ouve falar. O crime e a violência estão enrodilhados em sua árvore genealógica. A avó materna é investigada por tráfico de drogas, a mãe foi presa por roubo, um dos seus irmãos foi assassinado por traficantes aos 15 anos e o outro, de 17, tem diversas passagens pela delegacia de infratores. Tios e primos cumprem pena em presídios. Sobre o pai, já morto, pouco se sabe. Há quatro anos, Jadson vivia em um abrigo sem que ninguém esboçasse interesse em adotá-lo. Em uma dessas reviravoltas da vida, o menino apaixonado por futebol foi incluído em um grupo de crianças carentes que viajou para um intercâmbio à Itália em 2016. Lá, conheceu Irene, que decidiu manter o garoto na Europa definitivamente. “É um milagre um desfecho como esse, principalmente em se tratando de um adolescente nessa idade”, afirma Mônica Labuto, juíza titular da 3ª Vara da Infância e da Juventude da Capital, responsável pelo caso.

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Comemoração dos 14 anos de Jadson: parabéns em família de nova nacionalidade (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Desde 1999, quando o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro passou a concentrar todos os processos do gênero realizados nas varas do estado, 388 crianças e adolescentes foram viver com uma nova família no exterior. Para esses cariocas e fluminenses abandonados pelos pais biológicos ou cujos responsáveis perderam o poder familiar (a Justiça entendeu que eles não tinham condição de cuidar dos filhos), trata-se de uma inestimável segunda chance. Um menor só é incluído no cadastro para adoção por estrangeiros — ou brasileiros que vivem fora do país — depois de esgotadas todas as possibilidades de adoção no Brasil.

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Bonizzato com Renan e Matheus, em Verona: adaptação completa ao estilo de vida italiano (Acervo pessoal/Divulgação)

Em média, entre a habilitação do candidato no exterior e o momento de estar frente a frente com a criança, passam-se dois anos. Além do desejo de ser mãe ou pai, o procedimento envolve tempo e dinheiro. O candidato, antes de concretizar a adoção, é obrigado a fazer um estágio de convivência com o futuro filho de, no mínimo, um mês. No caso de Irene, ela alugou um apartamento, em Copacabana, para estreitar o convívio com Jadson. Para isso, tirou férias do hospital onde trabalha e seu marido pediu uma licença sem vencimentos. Essa fase final é acompanhada de perto por psicólogas e assistentes sociais. “A maioria das pessoas não tem ideia do controle que existe num processo desses. Quando se fala no assunto, muitos ainda conservam aquela visão de sequestro de criança, venda de órgãos ou trabalho forçado”, lamenta a desembargadora Ana Maria Pereira de Oliveira, coordenadora da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (Cejai/RJ).

Uma multiplicidade de fatores torna o Rio uma cidade-chave da adoção por estrangeiros. Um deles é a fama mundial da cidade, que inclui tanto a imagem de simpatia como as mazelas sociais, mas há também o fato de que aqui há mais crianças à espera de um lar do que nos países da Europa e nos Estados Unidos. Além disso, o sistema legal é considerado ágil e transparente. Foram quesitos que pesaram na escolha de Irene. O caso da médica, porém, é mais emblemático. Jadson é seu terceiro filho carioca. Em 2009, ela adotou Renan, então com 7 anos, que havia nascido com paralisia cerebral e foi abandonado aos 40 dias. O bebê também tinha o vírus HIV, transmitido na fase fetal pela mãe contaminada (sua carga viral hoje é baixa). Aos 15 anos, o garoto está bem adaptado à família, fala italiano e participa de torneios de natação. “Se tivesse gerado uma criança com problemas, ela não deixaria de ser meu filho. É a mesma coisa”, diz Irene. Há três anos, a italiana adotou o extrovertido Matheus, hoje com 10 anos. O menino, que vivera nas ruas e já tinha dois irmãos adotados por italianos, chegou a fazer parte de uma família brasileira mas foi devolvido.

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(Veja Rio/Reprodução)

Tratada como uma medida excepcional, a adoção por estrangeiros segue uma série de normas. A principal delas é que o país do pretendente seja signatário da Convenção de Haia, de 1993, que visa a proteger o menor contra os riscos de um processo ilegal e assegura a eles os direitos de um cidadão nato do novo país. O passo a passo tem de ser vistoriado por autoridades das duas nações, além de agências e ONGs internacionais credenciadas. Batido o martelo, a adoção é irrevogável. Durante dois anos, os casos são acompanhados pela Justiça brasileira. Em uma desistência — o que é raro — a criança passa a ser responsabilidade do outro país. Hoje, há 51 famílias estrangeiras cadastradas no Rio. A Itália de Jadson, Matheus e Renan, que agora têm dupla nacionalidade, é a nação que lidera o ranking das adoções de cariocas, seguida por França, Espanha, Estados Unidos, Portugal e Áustria. “Eu já havia perdido as esperanças de ter uma fam��lia, achava que iria viver num abrigo até ficar adulto”, conta Jadson.

Os dados oficiais mostram que existem no Brasil 7 544 crianças e adolescentes aguardando adoção — embora o número de jovens que vivem em instituições seja muito maior. Ao mesmo tempo, os cadastros apontam 39 558 pessoas dispostas a virar pai e mãe. Mas se há mais pretendentes do que candidatos por que a conta não fecha? A resposta é simples: quase todo mundo almeja um bebê branco e saudável. E mais: 80% dos candidatos só aceitam crianças de até 5 anos. “Não é verdade que a adoção no Brasil demore muito. O que acontece é que as filas se formam porque as pessoas têm uma imagem idealizada e se fecham para outras possibilidades”, diz o juiz Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, da Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas da Infância e Juventude. As crianças disponibilizadas para o exterior têm, em média, mais de 8 anos e já estiveram em situação de vulnerabilidade grave. Todas as histórias envolvem maus-tratos, abandono, exploração, abuso sexual ou vários itens juntos.
O primeiro caso de adoção internacional de que se tem notícia no Rio aconteceu em 1970. Na época não existia uma legislação sobre o assunto. Por sugestão de uma voluntária sueca, que atuava no Orfanato Romão Duarte, o ex-juiz de menores Alyrio Cavallieri (1921-2012) decidiu intermediar a ida de sete crianças para famílias da Suécia. Anos mais tarde, verificou-se que todas haviam se adaptado à nova realidade e estavam encaminhadas profissionalmente. Hoje, como naquela época, quem adota uma criança brasileira não tem obrigação de manter vínculos com o país. A italiana Irene, no entanto, aprendeu o português e faz questão de que seus filhos não percam a ligação com sua cultura. Uma vez por semana, ela, que divide os cuidados com as crianças e os afazeres de casa com o marido, conta com a ajuda de uma cozinheira brasileira para preparar os pratos preferidos dos meninos. “Dá muito trabalho, sim, mas sempre sonhei com uma casa cheia e barulhenta”, emociona-se a médica. Indagada se a família está completa com Jadson, ela titubeia: “Os garotos pedem muito uma irmã. Quem sabe não volto ao Rio para adotar uma menina?”. Amor de mãe extrapola fronteiras.

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(Veja Rio/Divulgação)
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