Bienal do Rio trava batalha para atrair mais leitores
Marcada pelo gigantismo, a festa do livro quer despertar novos fãs da literatura em meio a um público acomodado às facilidades da internet
Vestido com uma armadura enferrujada, um fidalgo meio abilolado, montado em seu cavalo, teima em resgatar os tempos gloriosos e heroicos em que a coragem, a virtude e o amor puro por uma donzela dominavam o imaginário medieval europeu. Vire a página. Com seus olhos de ressaca, personalidade misteriosa e sedutora, a protagonista deixa uma intrigante dúvida no ar: ela traiu ou não o marido? Mais uma folheada. Na Inglaterra vitoriana, um aristocrata se vale das últimas novidades da ciência e da lógica dedutiva para desvendar casos intrincados e insolúveis. Para quem é familiarizado com os clássicos da literatura, não é preciso dar maiores explicações para compreender que se trata da descrição de Dom Quixote, Capitu e Sherlock Holmes, criações magistrais de Miguel de Cervantes, Machado de Assis e Arthur Conan Doyle. Encarnados, respectivamente, por personalidades como Cauã Reymond, Bela Gil e Pedro Bial, tais personagens emblemáticos foram escolhidos para protagonizar uma ambiciosa campanha de incentivo à leitura a ser lançada na Bienal do Livro, evento que começa na quinta (31), no Riocentro.
Batizada de Leia-Seja, a iniciativa tem a missão hercúlea de chamar atenção para uma prática que é crucial na formação cultural de uma sociedade e, de forma impressionante, vem caindo em desuso no país: a leitura de livros. Além de Cauã, Bela e Bial, a campanha trará o técnico de vôlei Bernardinho como o capitão Rodrigo, de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, a cantora Baby do Brasil e o publicitário Washington Olivetto (o idealizador das peças publicitárias) como a Emília e o Visconde de Sabugosa, ambos do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. A campanha é uma reação a números assustadores. As vendas de livros no país, o principal indicador de quanto se lê por aqui, despencaram 20% entre 2014 e 2016, o que significa 50 milhões de exemplares a menos nas mãos do público. “A Bienal é um oásis no meio desse cenário. A ideia é aproveitar a festa, que tem atraído cada vez mais jovens, para ressaltar o potencial de uma boa história e despertar novos leitores”, diz Marcos Pereira, sócio da editora Sextante e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), entidade responsável pelo evento e pela campanha publicitária.
Ainda que os números do mercado editorial delineiem um cenário pouco animador, a Bienal do Livro do Rio segue, paradoxalmente, como um sucesso estrondoso de público e vendas. Depois do réveillon e do Carnaval, é o terceiro maior evento do calendário carioca em termos de público. Durante onze dias, calcula-se que mais de 670 000 pessoas passarão pelo Riocentro. Embora a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em 2016, tenha revelado que 30% da população nunca comprou um livro, cada visitante sai do pavilhão de Jacarepaguá carregando, em média, seis volumes. E os números superlativos não param aí. Neste ano, 5,5 milhões de livros estarão expostos — uma massa de encadernações que, colocadas lado a lado, cobririam com folga os 1 375 quilômetros entre o Rio e Brasília. O público que participará dos bate-papos e encontros com os autores deve somar 113 500 pessoas, o equivalente a um Maracanã e meio lotado. São esperados 338 escritores (doze deles internacionais), contra os 226 que estiveram na edição anterior. Para garantir que tudo funcione, foi montada uma equipe gerencial para lidar com grandes multidões, uma especialidade que os americanos chamam de crowd management. Além de dimensionar a estrutura para receber fãs de autores tratados como pop stars, o grupo tratará de monitorar as redes sociais. Já se prevê que a youtuber Kéfera Buchmann e os fenômenos teen Larissa Manoela e Maisa Silva (aquela que foi estrela mirim do Programa Sílvio Santos) provoquem cenas de histeria explícita. Entre as medidas adotadas para evitar tumultos está a ampliação da central de distribuição de senhas para sessões de autógrafo. “Deixamos de ser só uma feira para nos transformar em um grande evento cultural. Não existe dia calmo, é quase uma rave de duas semanas”, brinca Tatiana Zaccaro, diretora da Bienal e representante da Fagga, empresa que organiza a estrutura junto com o Snel.
No embalo festivo, a campanha que joga luz sobre o prazer e o poder da leitura protagonizada por celebridades envolverá uma série de atrações espalhadas pela Bienal. Logo na entrada, o slogan Leia-Seja em letras garrafais será um convite às selfies. Pelos corredores haverá atores encarnando protagonistas de clássicos da literatura (também prontos para aquele clique para as redes sociais) e imensos painéis com fotos e vídeos da ação publicitária — que, numa segunda fase, terá Lázaro Ramos e Taís Araújo como Romeu e Julieta. Tamanho esforço tem o objetivo de cativar um público cada vez mais afeito à velocidade do mundo digital e fascinado com os videogames e a televisão pela internet. Na última pesquisa realizada sobre o tema, a leitura aparece em um mirrado décimo lugar entre as atividades preferidas dos brasileiros em seu tempo livre. Assistir à televisão continua no topo do ranking, mas chama atenção o salto dado pelo uso da web, cravado no terceiro lugar, abaixo do hábito de ouvir música. O costume de navegar pelo mundo digital, que em 2011 era o preferido de 24% dos entrevistados, em 2015 passou a atrair 47% deles. O mesmo estudo revela que a população lê em média quatro livros por ano, incluindo os didáticos. Um número ínfimo se comparado, por exemplo, aos doze lidos, em média, por cada habitante dos Estados Unidos. Na Alemanha, um levantamento divulgado em agosto mostrou que 61% das crianças entre 6 e 13 anos daquele país leem livros mais de uma vez por semana. Em contrapartida, só 34% delas veem vídeos no YouTube, plataforma que é um fenômeno por aqui. “Não se pode dizer que o jovem brasileiro não lê. Ele fica o dia todo consumindo conteúdo na internet, trocando mensagens escritas no WhatsApp. O problema está na falta de qualidade e na tendência ao imediatismo nesses meios, com textos vapt-vupt e respostas mastigadas”, alerta Silvia Colello, professora de psicologia da educação da Universidade de São Paulo (USP). O médico Fábio Barbirato, chefe do setor de psiquiatria infantil da Santa Casa de Misericórdia, vai mais longe: “Além de não desenvolver o senso crítico como o livro, o ambiente virtual é excitante e cheio de estímulos que podem levar ao vício. A questão não é proibir, mas impor limites”.
Não é por acaso que a maior festa do livro brasileira tem atrações cuidadosamente pensadas para esse público mais jovem e totalmente conectado ao ambiente virtual. Com capacidade para 400 pessoas por sessão, a Arena#SemFiltro promoverá debates sobre temas como intercâmbio cultural, diversidade sexual, games e moda. A lista de convidados vai do filósofo Mário Sérgio Cortella à celebridade da internet Maju Trindade, passando por atrizes como Marina Ruy Barbosa e Sophia Abrahão, que já lançaram livros. Pela primeira vez, a Bienal também terá um espaço, o Geek & Quadrinhos, voltado para os aficionados de super-heróis, ficção científica, literatura fantástica e, claro, HQs. Em uma área de 200 metros quadrados, o público poderá participar de discussões e disputas sobre o mundo da cultura pop, testar equipamentos de realidade virtual, experimentar novos jogos de tabuleiro e assistir a competições entre ilustradores profissionais sobre obras de literatura fantástica e ficção científica. Fazem parte do programa sessões de swordplay, embates que simulam lutas medievais, e oficinas de quadrinhos e de maquiagem, incluindo a de cosplay — nome dado ao hobby de fantasiar-se de personagens das histórias. “O sucesso de eventos como a feira Comic Con Experience mostrou que não dá mais para ignorar esse público. O espaço, além de atrair esses fãs, vai despertar a curiosidade do visitante em geral”, acredita Affonso Solado, um dos grandes nomes da literatura fantástica nacional e curador da área.
Espelho do mercado editorial, a Bienal nunca esteve tão heterogênea. Atualmente não há um fenômeno que arrebate leitores brasileiros em profusão como ocorreu, por exemplo, com a saga do bruxinho Harry Potter — 450 milhões de títulos vendidos no mundo, 4 milhões no Brasil. A área que demonstra melhor desempenho hoje é um segmento de não ficção, que engloba autoajuda, espiritualidade e biografia. Nesse último gênero, um dos grandes êxitos de vendas, com 300 000 exemplares comercializados, é o livro de Rita Lee, que ainda não confirmou presença na festa. Na linha autoajuda, o destaque é o repórter americano Charles Duhigg, ganhador do Pulitzer, o maior prêmio na área do jornalismo e literatura dos Estados Unidos. Ele é o autor de O Poder do Hábito, uma espécie de livro-incentivo para quem quer turbinar a atuação profissional. A britânica Paula Hawkins, que já vendeu 20 milhões de unidades de A Garota do Trem, e a portuguesa Sofia Silva, que arrebatou os brasileiros no meio digital com a série Quebrados, também são apostas entre os autores internacionais. Além de contar com as novas áreas, a feira oferece o Café Literário, dedicado a debates, o auditório Encontro com Autores, o espaço mirim EntreLetras e setores para autógrafo. “A intenção é abranger um público o mais variado possível, sem deixar de estar atento à estrutura”, explica Cida Malka, gerente de eventos paralelos da Bienal.
Lançada em 1983 de forma acanhada em um salão do Copacabana Palace, a Bienal carioca chega à sua 18ª edição sem comparação entre seus pares. Não é exagero dizer que não há nenhum evento voltado para a literatura com estrutura e abrangência iguais. A Feira de Frankfurt, na Alemanha, a principal referência no setor, restringe-se, na maior parte do tempo, aos profissionais do mercado editorial, com os estandes abertos ao público em geral apenas nos fins de semana. Em Buenos Aires, até existe uma iniciativa com moldes parecidos, mas bem mais enxuta. Por aqui, a Bienal de São Paulo, por exemplo, só começou a trazer autores internacionais nas últimas edições. Entre encontros, debates e palestras, a festa carioca neste ano se supera, com 353 horas de programação cultural, 40% mais do que em 2015. O cenário é perfeito. Resta agora despertar a centelha latente em um público que cada vez mais se acomoda às facilidades do computador e do celular.