Despido de preconceitos, mercado do bem-estar sexual bate recordes no Rio
As mulheres perdem a vergonha de falar de sexo e ir atrás de satisfação, mudança de comportamento que dá impulso a um profícuo mercado de acessórios
No livro O Segundo Sexo, de 1949, a francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) apresentou ao mundo a hoje clássica teoria de que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Sete décadas mais tarde, diante de tantos tabus rompidos e tão vastas conquistas do movimento feminista, que tem na frase cunhada pela filósofa existencialista uma espécie de mantra, as mulheres seguem despindo-se de vergonhas, vencendo inseguranças e, enfim, vendo-se mais livres para sentir prazer e falar disso.
No recém-lançado A Arte de Gozar — Amor, Sexo e Tesão na Maturidade, a antropóloga Mirian Goldenberg revisita a frase de Beauvoir, adaptando-a à moldura atual: “Nenhuma mulher nasce livre, mas torna-se livre”. “A grande revolução sexual aconteceu nos anos 1960, mas, como as mudanças culturais são lentas, só agora nós estamos nos permitindo aproveitar o melhor da vida”, avalia a pesquisadora.
Essa libertação se faz refletir na chamada indústria do autocuidado, na qual um filão salta aos olhos por sua acelerada expansão — o do bem-estar sexual. De acordo com um levantamento da plataforma de inteligência Cortex, o número de novas empresas cariocas dedicadas a esse nicho avançou 43% entre 2019 e 2022 — um recorde.
Por trás das estatísticas estão histórias de empreendedores como a carioca Isabela Cerqueira, 28 anos, que, para aplacar o tédio dos tempos de quarentena, criou uma página no Instagram para tratar de sexualidade sem amarras, como se estivesse entre amigas. No rol de seus vídeos, que contabilizam milhares de visualizações, pipocam bem-humoradas dicas para um sexo oral inesquecível e até instruções para facilitar a penetração anal, tudo sem tabu.
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Passados cinco meses, a ideia se transformou em CNPJ, e a engenheira de produção abriu mão da carreira numa multinacional para mergulhar no e-commerce Good Vibres, onde brinquedinhos como vibradores, masturbadores e algemas, além de lubrificantes e óleos de massagem, ganham lugar na colorida vitrine virtual. “Eu queria que o negócio tivesse a minha cara. Aquele sex shop escondido num fundo de galeria não me representa, ninguém tem que sentir vergonha de buscar prazer”, defende Isabela, cuja empresa faturou 3,4 milhões de reais em 2022.
A reviravolta provocada pela pandemia deu velocidade a diversas revoluções comportamentais, entre elas o hábito de olhar para si mesmo e valorizar o bem viver. A saúde sexual se insere nesse contexto de mudança de hábitos em prol de uma existência mais leve e prazerosa. “Há uma transformação em relação ao mercado erótico. Se antes quem recorria a acessórios parecia ter problemas, agora significa que essas pessoas estão bem resolvidas com a própria sexualidade”, avalia a professora de pesquisa e comportamento do consumidor Bianca Dramali, da ESPM Rio.
“O tema, que já foi cercado de tabus, hoje está ligado ao empoderamento e ao autoconhecimento”, diz. Voltados principalmente para mulheres, os produtos e serviços aliam o deleite à saúde e ao cuidado íntimo. Muitos deles, inclusive, passaram a ser recomendados por ginecologistas. De acordo com um artigo publicado em janeiro por médicos do renomado hospital Cedars-Sinai, de Los Angeles, nos Estados Unidos, “o uso de vibradores estimula a força do assoalho pélvico e ajuda a reduzir a dor vulvar”.
“Desbravar o próprio corpo só traz benefícios. Minhas pacientes falam da diminuição da ansiedade e de uma sensação de autonomia”, conta a ginecologista Nathalie Raibolt, mestre em saúde da mulher pela Fiocruz. “Um sommelier não nasce sabendo tudo sobre vinhos. Com prática, qualquer pessoa pode se tornar um sommelier do prazer”, compara.
O silêncio em torno do prazer feminino ficou cristalizado até há bem pouco tempo. Mesmo pesquisas acadêmicas sobre o tema não ganhavam o devido destaque nas prateleiras das grandes livrarias, como lembra a antropóloga Mirian Goldenberg. “Em 1990, quando lancei meu primeiro livro com um perfil das amantes de homens casados, descobri que ele estava sendo vendido numa loja de produtos eróticos de Ipanema. Achei engraçado”, lembra.
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“Hoje sinto que meus escritos têm impacto prático na vida das mulheres”, diz. Há um boom de procura também na seção de romances, sobretudo em plataformas de autopublicação. “Em minhas histórias, nada é explícito, gratuito. Para as mulheres, o sexo tem que ter uma razão”, afirma Andreia Amado, tradutora que passou a desenvolver uma escrita que envereda pelos prazeres da carne e não revela o rosto para manter a aura de mistério. Seus dois livros, Ezra, o CEO e a Diretoria e Lucius, o Bad-Boy e a Mãe do Meu Melhor Amigo, disponíveis na Amazon, Apple Books e GooglePlay, ultrapassam inclusive fronteiras, registrando elevado número de downloads em Portugal e até na China.
Outras iniciativas nesse campo refletem o rompimento de barreiras que antes freavam as mulheres, como o Clube do Batom, em Botafogo, que reúne a ala feminina em happy hour para dançar, assistir a shows de strippers, conhecer novos brinquedinhos e participar de palestras sobre assuntos que vão de relacionamento tóxico a masturbação. Nas noites de sábado, a festa Clube Secreto chega a atrair uma centena de mulheres, cuja atenção se divide entre espetáculos burlescos, sessões de massagem e minicurso de sensualidade.
“Tem quem pense que elas vêm para cá para transar, trair o marido, mas é justo o contrário. Estão aqui para aprender e depois pôr em prática”, explica a sexóloga Júlia Ferraro, CEO do Clube do Batom. No cenário pós-pandemia, os eventos presenciais foram retomados com um aumento de 50% do público, graças ao vigoroso trabalho de Júlia como criadora de conteúdo nas redes.
Nessa busca por mais conhecimento, o tantra, filosofia milenar indiana, vem ganhando visibilidade, através de aulas, sessões de massagem e meditação. “A sexualidade vai muito além do tesão e do orgasmo. O tantra é um caminho espiritual que usa o corpo para se conectar com o divino”, esclarece Isabel Litsek, que se apresenta como Divina Bel, terapeuta especializada que oferece atendimentos individuais e em grupo para até trinta pessoas.
Mesmo que o tema do prazer feminino tenha estado presente no correr dos séculos, a história mostra que o percurso foi extenso e árduo até que as mulheres começassem a desfrutar de liberdade de fato. E ainda assim há muito chão pela frente. Em países do Cáucaso, por exemplo, mostrar os lençóis manchados de sangue na manhã seguinte ao casamento é até hoje uma tradição que enaltece a virgindade. No Brasil, o direito ao voto das mulheres só foi reconhecido em 1932. Três décadas mais tarde, a criação do Estatuto da Mulher Casada permitiu que esposas pudessem trabalhar sem a necessidade de autorização do marido. Em 1977, o divórcio finalmente se tornou uma realidade. Até 2006, o país não tinha nenhuma lei que tratasse especificamente da violência doméstica, e a importunação sexual feminina só viria a ser enquadrada como crime em 2018.
Na última década, as buscas relacionadas a feminismo e luta pelos direitos das mulheres no Google cresceram 120% — e as ferramentas digitais funcionam como ambientes cada vez mais confortáveis para o debate sincero. Criadora do coletivo Matildes, que incentiva a troca de experiências entre mais de 700 mulheres em grupos de WhatsApp, a jornalista Antonia Leite Barbosa percebeu que deveria criar um fórum inteiramente dedicado à sexualidade quando, um belo dia, uma participante pediu opiniões sobre um modelo de sex toy e ninguém se manifestou.
A empreitada só deu certo depois que um termo de confidencialidade passou a ser obrigatório — hoje, 195 mulheres compartilham as próprias histórias íntimas no Matildes Boudoir. “A partir desse grupo, passei a tratar de temas que nunca abri nem para as minhas melhores amigas, como o uso de vibrador durante o sexo. Agora falo mais abertamente sobre as minhas preferências e faço menos concessões, me colocando em primeiro lugar”, diz Antonia, que tratou de marcar um ensaio fotográfico sensual, como algumas de suas companheiras de grupo já haviam feito.
O uso de tecnologia a favor do bem-estar sexual para outros fins que não a pornografia é bem recente e impulsiona uma nova leva de empresas, conhecidas como sextechs. Dados da Allied Market Research apontam que o segmento já movimenta mais de 70 bilhões de dólares por ano planeta afora.
Apesar de todo o avanço, uma pesquisa da plataforma Sexlog, que conecta pessoas interessadas em sexo liberal e swing e contabiliza 1 milhão de cadastros no Rio, mostra que metade desses usuários “raramente” ou “nunca” recorre a brinquedinhos na hora H. É um indicador de que o mercado tem espaço para se expandir, mas, para isso, é preciso que mais mulheres sigam galgando degraus. Há outros desafios de cunho mais prático.
Quem aposta na internet como canal de vendas tem de se esmerar na criatividade, uma vez que, não raro, as ferramentas derrubam propagandas de itens sexuais. “Depois de ser bloqueada pelo Instagram, precisei virar criadora de conteúdo. Inventei até um bordão: se existe o skincare, temos que aprender a fazer o pepecare”, brinca a empresária Juliana Mattos, à frente da Discreto Shop, na Barra, que faturou 1,3 milhão de reais em 2022.
Com atendimento com hora marcada, a loja se parece mais com um consultório médico. “Eu realizo uma anamnese com cada cliente para poder indicar o produto ideal”, diz. “Quando recebo um relato de uma mulher que atingiu um orgasmo pela primeira vez, a motivação dobra de tamanho”, celebra Isabela Cerqueira, da Good Vibres. E viva a liberdade.