É muito charme! A história do movimento que há 4 décadas arrasta multidões
No inícios da década de 1980, o DJ Corello rebatizou o rythm and blues de charme. "Eu pedia para as pessoas dançarem com charme, daí veio o nome”, explica
Era uma sexta de feriado, 12 de outubro de 1991 e havia chegado o momento pelo qual Marcus Azevedo, de 12 anos, esperou a vida inteira, o dia do seu primeiro Baile Charme. A matinê, tipo de festa que começava à tarde e durava até as 21h, aconteceria no Clube Vera Cruz, no bairro da Abolição. Acompanhados pelos responsáveis, jovens poderiam ter a primeira experiência com o charme.
O garoto que escutava as músicas com os pais pela rádio e ensaiava os passinhos com os primos na varanda teria finalmente a oportunidade que sempre sonhou. O primo e a namorada conseguiram a permissão dos pais de Marcus para levá-lo ao evento.
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Quando chegou ao baile, o pequeno charmeiro teve certeza do que queria fazer pelo resto da vida.“Eu fiquei deslumbrado. Tudo que eu já tinha ouvido nas rádios e gravado nas fitas cassetes estava ali, na minha frente. Eu chorava pra caramba, estava muito emocionado. Já era um viciado em charme com aquela idade. Daquele dia em diante, eu pensei: poxa, se eles conseguiram me levar para um, podem me levar para todos”, conta Marcus, de 45 anos, hoje um dos coreógrafos mais importantes da cena Charme.
Criador do grupo Originais do Charme, o único time de bailarinos composto por charmeiros entre 40 e 60 anos, Marcus se tornou um profissional versátil: é produtor cultural, diretor de arte e professor de dança charme pelo Projeto RioCharme Social, com aulas no Viaduto de Madureira.
O espetáculo Flash Black, previsto para estrear em outubro, é a próxima empreitada da equipe dirigida pelo artista. “É a primeira vez que uma companhia de dança charme vai se apresentar no Teatro Imperator, no Méier, justamente o bairro onde o Charme surgiu”, diz Marcus, se referindo ao baile que iniciou o Movimento Charme, há 44 anos.
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Na noite do dia 8 de março de 1980, Marco Aurélio Ferreira, de 26 anos, trabalhou como DJ em um baile no Sport Club Mackenzie, no Méier. Era um ambiente novo para o popular Corello DJ, pseudônimo artístico que surgiu da versão reduzida do nome Marco Aurélio. Eleito “melhor DJ do ano”, ele, até o ano anterior, tocava disco music no Cesp da Rodoviária, o antigo Clube dos Portuários, na Zona da Leopoldina.
Em meados da década de 1970, a música disco ganhou popularidade com o desgaste do gênero afro-americano Soul, mas, no início dos anos 80, a discoteca já apresentava sinais de fraqueza como movimento de dança coletiva. Uma atmosfera de vácuo musical se abria para as equipes de som do subúrbio do Rio. Corello soube que precisava inovar. Chegou, então, ao Mackenzie com um novo repertório de músicas que guardou durante anos, sobretudo uma coleção importada de álbuns de vinil de rhythm and blues, ou R&B.
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A festa estava cheia quando ele convidou o público para a pista ao som das músicas lentas e melódicas que transformariam os bailes da cultura negra carioca. “Foi depois da meia-noite, então já era nove de março. Eu comecei o baile tocando charme e disse: Chegou a hora do charminho, transe seu corpo bem devagarinho”, relembra o DJ, agora com 70 anos.
Corello trouxe o R&B americano para o Brasil e o rebatizou como charme, termo que se tornou popular na capital fluminense. “Ninguém sabia falar rhythm and blues. Não existiam essas escolas de inglês como hoje em dia”, explica o artista. A escolha do nome está relacionada ao movimento corporal diferenciado que as pessoas fazem quando dançam às músicas. “Você precisa ter um certo charme para poder dançar. Eu pedia para as pessoas dançarem com charme, daí veio o nome”, explica.
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A dança charme é o elemento que mais chama a atenção no momento do baile. Formado pelos passinhos sociais, ou passinhos de charme, os movimentos foram influenciados por diversos outros segmentos, sejam os clássicos da década de 80, como o jazz, a discoteca, o soul e o funk, sejam os que surgiram a partir da década de 90, como o hip-hop e o samba.
O que toca em um baile charme também é variável ao depender da época. Os charmeiros chamam de flashbacks as músicas produzidas até meados dos anos 1980, período em que o R&B era predominante, e de midbacks o estilo musical do fim dos anos 80 e início da década de 90, quando o Urban R&B surgiu.
“Tudo isso se deve ao Corello. Ele identificou dentro do repertório da música negra americana essa vertente mais desacelerada e romântica, com uma harmonia e sonoridade mais sofisticadas”, diz o jornalista Silvio Essinger, autor do livro-reportagem “Batidão: Uma História do Funk”, de 2005. Desde os anos 1990, gêneros mais dançantes como o new jack swing, o hip-hop e o neo soul transformaram os bailes charmes em verdadeiros Bailes Black, onde pode se escutar black music em diferentes vertentes.
Logo após o nascimento do charme, o único baile que existia era o do Corello, no Mackenzie, mas logo a musicalidade introduzida pelo DJ se espraiou para novos eventos. Em 1983, surgiu o Disco Voador, que acontecia todos os domingos, em Marechal Hermes. Eram dois eventos no mesmo dia: primeiro uma matinê, depois um baile para os maiores de idade. A festa foi um sucesso que chegou a levar até 3000 pessoas para o clube num mesmo dia.
Outro baile de destaque foi o do Vera Cruz, na Abolição, que acontecia tipicamente às sexta, das 22h às 4h. Ele foi importante por conta da elegância e por ter o próprio Corello como um dos organizadores. “Vera Cruz era um baile muito tradicional, que só autorizava que o charmeiro entrasse de traje social. Não podia entrar de calça jeans e tênis. Ele queria preservar o começo da história do charme dos anos 1980”, explica Marcus Azevedo.
Na metade da década de 1980, surgiu a equipe de som Só Mix Disco Club, que tinha como proprietários Fernandinho DJ, Wilson DJ e Alexandre Careca. A primeira casa relevante que tocaram foi o Cesp da Rodoviária. Em pouco tempo, se tornaram sócios de Corello e realizaram bailes com artistas internacionais no Vera Cruz. Nomes renomados da música negra como Omar Chandler, Coach Harrison e Sybil foram alguns dos convidados. Foi um grande momento para o charme.
O jovem Michel Jacob Pessoa, filho de Wilson DJ, cresceu nesse ambiente, “respirando música o tempo inteiro”. O padrinho, Alexandre Careca, sempre o levava para ajudar a montar os equipamentos dos bailes. Um dia, Loopy DJ, da Só Mix, perguntou se ele queria aprender a mixar. Michel respondeu que sim. Depois de uma semana treinando na casa do veterano, ele passou a treinar sozinho. O resto é história.
A única pergunta que Evandro Nascimento de Souza, o Leno, nunca responde é sobre a própria idade. No dia 11 de maio de 1990, por volta dos 20 ou 25 anos, ele se juntou ao amigo José Pedro Batista Martins e os comerciantes Xandoca e Edinho para fundar o bloco carnavalesco Pagodão de Madureira, que iria realizar rodas de samba aos domingos na parte inferior do Viaduto Prefeito Negrão de Lima, no “Coração da Zona Norte”.
Leno idealizou a organização com inspiração no Pagodão dos Artistas, grupo que abria desfiles das escolas de samba da Marquês da Sapucaí com a cantora Alcione.
Quatro anos depois, o camelô César Athayde entrou em contato com a Diretoria do Bloco e com os DJs Corello e Fernandinho para apresentar a ideia do projeto Charme na Rua. César e o irmão, Celso, queriam tornar o baile charme um evento mais popular. Junto a outros camelôs, eles montaram uma festa gratuita e acessível para as classes mais baixas.
“César Athayde pediu para criar um baile debaixo do Viaduto aos sábados. Os clubes de baile charme da época, como o Mackenzie e o Vera Cruz, eram mais elitizados. Os camelôs de Madureira organizaram a ideia do baile para poderem curtir o charme também”, conta Leno.
No dia 22 de março de 1994, aconteceu, então, o primeiro Baile Charme do Viaduto de Madureira. A partir deste ponto, a origem do “Dutão” ganha contornos complexos.
O texto do site oficial do Viaduto de Madureira, assim como outras fontes pesquisadas, não cita os irmãos Athayde como os criadores do baile. Essas fontes atribuem a criação somente ao Bloco Carnavalesco, sem citar as datas dos primeiros bailes ou quaisquer mudanças na administração dos eventos. Outros artigos indicam que, após a morte de César, assassinado em 1995, Celso continuou como coordenador do charme no viaduto por muitos anos, antes da diretoria do bloco assumir essa posição. “O baile charme começou em 1994. Se alguém disser que fazia antes, é só enviar os documentos de autorização da prefeitura. Não é uma questão de narrativa, é uma questão de comprovação”, afirma Celso Athayde, que, anos depois, fundou a Central Única das Favelas (Cufa).
Michel Pessoa, que agora assina DJ Michell, fez parte de uma das primeiras equipes de DJs residentes do viaduto, ao lado de Loopy, seu mentor, e dos DJs Markin New Charm e Kally. Atualmente, ele compõe o time de todos os sábados com os DJs Fernandinho, Vig, Guto e Gab, filha de Corello.
Em 2010, Michel assumiu a função de diretor do núcleo social e cultural do viaduto, que hoje se chama Espaço Cultural Rio Hip Hop Charme. Foi ele que elaborou o Projeto RioCharme Social, um conjunto de oficinas de dança charme que surgiu a pedido dos frequentadores do baile. “Vai muito além da dança charme. Tem pessoas que encontraram ali uma possibilidade de se exercitar, por exemplo. É um projeto que impacta diretamente a vida deles”, diz o músico.
O coreógrafo Eduardo Gonçalves, amigo de longa data de Marcus Azevedo, foi um dos professores a iniciar o RioCharme Social. No momento, ocupa a posição de coordenador das oficinas. “Michel convidou Marcus para estar à frente das oficinas, mas ele, ocupado com outros projetos, não podia assumir. Marcus sugeriu meu nome para o Michel. Eu falei ‘vambora’. Estamos trabalhando lá até hoje”, relata Eduardo.
O aniversário de 34 anos do baile sob o viaduto, foi celebrado com pompa no último dia 11 de maio. Junto aos DJs residentes, DJ Tamy foi a estrela da noite. O evento contou com a participação de Leno e Michell, que discursaram para cerca de 4000 pessoas.
Na ocasião, foi inaugurado o Novo Museu de Negritude Urbana. Painés produzidos pelo grafiteiro Airá Ocrespo ajudam a contar a história da música negra, desde os primórdios, na África, até os dias de hoje, com o charme. “Foi um momento mágico. Você sente a vibração do lugar. Lá não existe diferença do pobre para o rico, do preto para o branco, do gay para o hétero. Ali é uma irmandade. É todo mundo junto em uma causa só”, diz Leno.
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Este conteúdo integra o conjunto de reportagens em texto, áudio e vídeo feitas por estudantes de jornalismo da PUC-Rio, sob orientação dos professores Adriana Ferreira, Alexandre Carauta, Chico Otavio, Creso Soares Jr., Giovanni Faria, Itala Maduel e Luís Nachbin.
A edição do site de VEJA Rio é de Marcela Capobianco.