Um atraso de vida
Desrespeitar os horários marcados é uma falta de educação grave que, infelizmente, está banalizada na rotina dos cariocas e se manifesta em espetáculos, consultas, reuniões de trabalho e encontros sociais
Depois de chegar atrasada a uma reunião e levar uma bronca do cliente, a arquiteta Bianca da Hora, 32 anos, decidiu tomar jeito. Resoluta, contratou um motorista para acabar de vez com sua persistente falta de pontualidade. A providência logo se mostrou inútil, e ela continua em guerra contra o relógio. Como visita muitas obras no mesmo dia, os compromissos se atropelam e provocam um efeito cascata na agenda. É um transtorno que afeta não só sua vida profissional como sua rotina pessoal. Certa vez, Bianca conseguiu a façanha de se atrasar para o próprio jantar de aniversário, delegando à mãe a tarefa de receber os convidados. ?Todos ficaram uma fera, mas o que posso fazer? É um defeito crônico?, reconhece a moça, apelidada, com propriedade, de ?Bianca sem Hora?. Ela sofre do mesmo mal que atinge a empresária Assunção Vieira, dona de uma loja de móveis e decoração. Desapegada, costuma sair de casa quinze minutos antes de seus encontros e, claro, frequentemente se atrasa. ?Eu me enrolo, não sei dizer ?não? às pessoas e, quando me dou conta, já está em cima da hora?, confessa. ?É indesculpável.?
De fato, não existe perdão, mas infelizmente Bianca e Assunção não representam casos isolados. Vamos ser francos: a impontualidade tornou-se um hábito no Rio de Janeiro, para o desespero de uma minoria atenta aos ponteiros ? e à boa educação. Seja em consultórios médicos, casas de espetáculos, cerimônias religiosas ou eventos sociais, a permissividade faz com que os cariocas considerem natural alguém se atrasar e nem sequer pedir desculpa, um gesto cada vez mais raro nessas circunstâncias. Com a tolerância arraigada no inconsciente coletivo, poucos percebem quanto a conduta é prejudicial à imagem e até aos cofres da cidade, passando a impressão de falta de seriedade. ?Essa nossa atitude relaxada e submissa acontece somente por aqui?, afirma Fernando Neto, consultor de gestão do tempo e professor de engenharia da PUC-Rio. ?Quando o carioca vai ao exterior a negócios, em países onde a pontualidade é uma tradição, ele respeita o cronograma e se enquadra direitinho.?
Na maioria das vezes encarada à beira-mar como um mero deslize ou uma característica folclórica, a flexibilização dos horários, digamos assim, é um procedimento inconcebível para quem vem de fora. Radicado no Rio faz doze anos, o engenheiro holandês Bart Wiersum, diretor de uma subsidiária da transportadora dinamarquesa Maersk, não se habituou a esse jeitinho nada ortodoxo em relação à pontualidade. Nas reuniões de trabalho, sempre cobra explicações dos retardatários. ?E ainda acham que estou sendo rude?, afirma, surpreso com a reação de quem leva o pito. É a mesma insatisfação manifestada pelo jornalista argentino Alberto Armendáriz, há um ano e meio na cidade como correspondente do diário La Nación. Ele lamenta que nem mesmo as entrevistas com autoridades comecem no momento combinado. ?Não é um mito, mas, sim, uma triste realidade que prejudica bastante minha rotina?, diz.
A origem do problema é a mesma que leva alguém a avançar o sinal, estacionar na calçada ou furar fila, isto é, o descaso com o próximo. Os motivos, entretanto, variam. Muita gente se atrasa sob a justificativa cínica de que só faz isso porque todo mundo age assim. Há ainda os alheios ao mundo à sua volta ou aqueles que pecam pelo excesso de compromissos. A agenda abarrotada costuma ser argumento destacado pelos médicos nessas situações. Em larga medida, profissionais dessa área são reféns do imponderável, como o chamado para uma emergência a qualquer momento. Mas, quando as exceções viram regra, o paciente é quem sofre na sala de espera. ?Eu mesma deixei de ir a um angiologista que me fazia aguardar por cinco horas?, conta a ginecologista e obstetra Yara Furtado, que conhece bem as duas faces da moeda. Ela própria se atrasa constantemente. Tanto é que, por precaução, passou a marcar consultas com uma hora de duração ? o dobro de antes ? e proibiu o encaixe de pacientes nos intervalos. O tempo de espera em seu consultório, que chegava a ser de quatro horas, caiu para 45 minutos. Ainda é muito, sim, e, se fosse nos Estados Unidos, a doutora poderia sair no prejuízo. Lá, alguns médicos adotaram a iniciativa de reembolsar quem fica mofando na antessala da clínica.
O desdém pelo relógio tem a força de uma norma nos palcos da cidade. Peças raramente se iniciam com menos de quinze minutos de atraso, e a situação é ainda mais grave nas casas de shows, em que o atraso-padrão fica em torno de meia hora. Nessa ciranda de ponteiros, nenhuma das partes envolvidas assume sua parcela de culpa. O artista só sobe ao palco depois de constatar a presença do público, que, por sua vez, chega mais tarde porque sabe que o espetáculo vai demorar. ?As pessoas têm a impressão equivocada de que o atraso é vantajoso para quem se apresenta. É desgastante para o cantor e para a gente, que acaba encerrando o expediente mais tarde?, afirma Rafael Vargens, produtor executivo do Circo Voador, local conhecido pela discrepância entre o horário programado e o horário de início das atrações. No verão de 2010, a casa na Lapa fez uma campanha, em vão, para começar pontualmente os shows. Desta vez, na tentativa de antecipar a entrada da plateia, o Circo vem recorrendo à promoção do chope duplo até a meia-noite. ?Na verdade, o público sabe que é ele quem controla o horário?, diz Vargens.
Nem todo mundo, é claro, age com a mesma falta de seriedade. A Rede Globo, por exemplo, exerce um controle rígido em sua programação. Criticados pela falta de organização, os jogos de futebol, mesmo os não televisionados, também costumam começar no horário, e até no meio artístico há quem se mantenha firme ao cronograma. Rigoroso, o ator Ney Latorraca evita a ditadura dos retardatários seguindo à risca o que está escrito no convite, seja de um espetáculo, seja de um jantar. ?Não é porque pagou ingresso que o sujeito vai determinar o início da peça?, explica. ?Ser pontual é respeitar o tempo do outro.? Quando está em cartaz, ele chega ao teatro cinco horas antes e entra em cena rigorosamente no minuto marcado. Uma boa lição para alguns colegas que não cultivam o mesmo apreço pelos ponteiros e já foram notícia por deixar estúdios e espectadores parados à espera deles – entre os quais Vera Fischer, Ana Paula Arósio, Paulo Vilhena, Dado Dolabella e Fábio Assunção. Obcecado por pontualidade, Latorraca programa seu momento de acordar de quatro formas: com o relógio da cabeceira, o serviço de despertador do telefone, o interfone do porteiro e, por fim, o aviso de sua empregada. Certa feita, ele chegou exatamente na hora estabelecida a uma festa de aniversário da atriz Claudia Raia. Enquanto esperava no sofá, a anfitriã ainda estava no banho.
Na esfera das relações pessoais, a pontualidade no Rio pode ser vista como uma gafe. Radicada na cidade há mais de três décadas, a programadora visual americana Priscilla Ann Goslin usa de ironia para descrever essa conduta no livro How to Be a Carioca, lançado nos anos 90. Seu manual ajuda o turista estrangeiro a desvendar certos códigos de comportamento verificados por aqui. Ela escreve: ?Se você chegar na hora marcada a um coquetel ou jantar, vai ficar conversando com as paredes ou papeando com a dona de casa, embaraçada. E você pode ter certeza de que ela não está embaraçada com o atraso dos demais, e sim com a sua pontualidade?. Também impressionado com o fenômeno no Rio, onde foi professor universitário visitante nos anos 70 e teve de lidar com o descaso generalizado dos alunos pelos prazos, o psicólogo americano Robert Levine fez uma pesquisa em 31 países que resultou no livro A Geografia do Tempo, publicado nos anos 90. Em seu ranking da impontualidade, o Brasil aparece à frente apenas de Indonésia e México.
Há uma corrente que associa a banalização do descompromisso ao nosso passado longínquo, mais precisamente ao desembarque da corte portuguesa, em 1808, acontecimento histórico que teria sido o estopim desse comportamento repassado ao longo de gerações. Ciosos de sua posição superior na hierarquia político-social da colônia, nobres e membros da alta burocracia se valiam de uma série de medidas para reforçar essa condição. Uma delas era fazer com que os súditos tomassem chá de cadeira antes de ser atendidos, mesmo que não houvesse nada na agenda do figurão. O gesto era uma mera afirmação de poder. Transposta para a atualidade, a atitude desrespeitosa segue a mesma lógica dos tempos do Império. O secretário estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, Rodrigo Neves, é um adepto desse péssimo hábito. Não raro, marca compromissos e, trinta minutos depois do horário combinado, manda avisar que está atrasado. ?Trata-se de um costume associado à organização verticalizada da sociedade brasileira. Quanto mais poderosa a pessoa, mais esperamos por ela?, afirma o antropólogo Roberto DaMatta.
Um belo exemplo desse tema vem de uma das monarquias mais consolidadas do planeta. A cerimônia de matrimônio do herdeiro do trono britânico William com Kate Middleton, no ano passado, seguiu à risca o roteiro, que previa a chegada à Abadia de Westminster do príncipe e seu irmão às 10h12 e da mãe da noiva quinze minutos depois, nem mais nem menos. Por aqui, ao contrário, atrasos em casamentos são sempre esperados, embora em São Paulo, Minas Gerais e Paraná já existam igrejas que – aleluia! – cobram multa dos noivos impontuais. No Rio, ainda temos um longo caminho a percorrer. Acabar com essa cultura passa pela conscientização de que dispor do tempo do outro, além de causar-lhe prejuízo, é uma falta grave de civilidade. E muito mais cruel do que a maioria percebe. Afinal, as horas perdidas em um compromisso jamais poderão ser recuperadas, pois, como se sabe, o tempo não para, muito menos volta atrás. Com a Copa do Mundo e a Olimpíada no horizonte próximo, está mais do que na hora de aprendermos a cumprir prazos e cronogramas. O desafio está lançado.