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Acidentes no Sambódromo alertam para uma nova gestão do Carnaval

O cheirinho de impunidade se agravou com a decisão de que nenhuma escola perderia pontos por isso e seria rebaixada

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 4 mar 2017, 00h30 - Publicado em 4 mar 2017, 00h30
O caos na armação do desfile da Unidos da Tijuca: socorro às vítimas em meio à passagem dos demais componentes da escola (Rafael Moraes/)
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Vai bater aqui. Vai bater! Bateu.” Nervosa, mas sem perder o profissionalismo, a apresentadora Fátima Bernardes deu uma de manobrista quando notou a perigosa aproximação de O Fogo de Uiangongo rumo à vidraça do estúdio da TV Globo, janelão de vista panorâmica para a Passarela do Samba. Com a caixa de marcha avariada, o quinto carro da União da Ilha rateou desde a concentração, atravessou a Sapucaí sob a vigilância de bombeiros e — vejam só a ironia — empacou de vez na Praça da Apoteose. Lá, foi empurrado na marra, para evitar maiores transtornos ao desfile. A Ilha chegou ao limite de 75 minutos permitido pelo regulamento e não perdeu pontos por um triz. Do lado de dentro da vidraça, Fátima, seu colega Alex Escobar e convidados festejaram aos gritos o sucesso da operação. Todos comemoraram o final feliz de um acontecimento inocente espremido entre catástrofes. Na véspera, no domingo (26), outro mamute sobre rodas, o Tropicarnafagia, o último carro da Paraíso do Tuiuti, atropelou vinte pessoas nos procedimentos para atravessar o setor 1 e ganhar a avenida. Mais tarde, na mesma segunda (27), parte do Nova Orleans, alegoria sobre rodas levada à Sapucaí pela Unidos da Tijuca (quatro vezes campeã), desabou, machucando doze pessoas. No calor do momento, os dois graves acidentes foram tratados como fatalidades. Esse é um erro perigoso, que deixa a porta aberta para desastres futuros.

Os desfiles do Grupo Especial no Sambódromo são o ponto alto de um evento que atrai 1,1 milhão de turistas para a cidade e injeta 3,3 bilhões de reais na combalida economia carioca. Também são parte vistosa dos recém-celebrados 100 anos de história do samba, uma das principais manifestações da cultura brasileira. Tradicional, querido e rentável, esse ótimo negócio deveria, portanto, ser conduzido de forma transparente e profissional, mas não é o que acontece. Inexistem, por exemplo, normas técnicas para balizar a construção de alegorias, definindo dimensões, estruturas e materiais. Os carros sempre esbarraram na fiação aérea das ruas, em viadutos e até na antiga Torre das TVs, a estrutura de concreto com 9,75 metros de altura projetada por Oscar Niemeyer para alojar fotógrafos e cinegrafistas durante os desfiles. E o que aconteceu? Os obstáculos têm sido driblados ou simplesmente removidos — foi o caso da torre no Sambódromo, posta abaixo. Abriu-se caminho para a escalada das estruturas monumentais, construídas no corre-corre dos barracões. “É imprescindível que seja criada uma comissão para estabelecer critérios específicos para a construção desses carros. Sem isso, o improviso pode levar ao acidente”, afirma Reynaldo Barros, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ). Bem, já levou.

Na Quarta-Feira de Cinzas, antes da apuração dos votos que consagrou a Portela campeã, foi lida uma nota da Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial (Liesa). O texto breve informava que, “em solidariedade às agremiações envolvidas nos lamentáveis acidentes neste Carnaval, as escolas de samba decidiram manter todas as agremiações, sem descenso”. Tradução: apesar dos terríveis acidentes, nenhuma escola perderia pontos por isso e seria rebaixada. Sobre as vítimas, silêncio. Maria de Lourdes Maura Ferreira, esmagada contra a grade pelo carro da Tuiuti, deu entrada no Hospital Souza Aguiar com fraturas nas pernas e no crânio e, até a manhã de quinta­feira, respirava por aparelhos. Eduardo Gomes mora no prédio conhecido como Balança Mas Não Cai, bem perto da Marquês de Sapucaí. Por isso, correu até o Sambódromo quando soube do desabamento de parte do carro da Unidos da Tijuca. Procurava notícias da mulher, Erica Gonçalves, foi tranquilizado e voltou para casa. Logo em seguida, recebeu uma foto dela sendo atendida pelos bombeiros e partiu para o Hospital Souza Aguiar. “Fui mais rápido a pé, ela chegou uns dez minutos depois. O pessoal da ambulância queixou-se de que falta rota de fuga, com as ruas interditadas e reboques pelo caminho”, contou.

Parte da festa, o caos deveria ser visto como atribuição dos foliões, não dos organizadores do Carnaval. Na quarta (1º), peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) observaram que o carro da Paraíso do Tuiuti não estava em suas melhores condições. Tinha uma roda quebrada e acabamento malfeito, na opinião dos policiais. Além disso, a visão do motorista era obstruída por enfeites coloridos, o que o levava a dirigir orientado por cinco membros da escola, que berravam, a pé e das laterais do veículo. Ricardo de Oliveira Cardoso Jr., 32 anos, um dos destaques do Nova Orleans, o carro da Unidos da Tijuca que desabou, notou que a estrutura já balançava nos ensaios. “E, quando chegamos para o desfile, havia mais pessoas em cima do carro do que nos preparativos”, completou. Parece fácil dizer isso agora, mas os sinais de perigo eram muitos. Estrago feito, deve-se aproveitar ao menos a lição. Membro da comissão de Carnaval da Unidos da Tijuca, Mauro Quintaes alega que a escola tratou com responsabilidade a produção de seus carros. “Foram feitos ensaios e não houve reaproveitamento de materiais, mas precisamos esperar a perícia”, disse. E apontou para o caminho da sensatez: “Quando um carro da Viradouro pegou fogo em 1992, não havia um sistema eficaz de combate a incêndio. Hoje existe. É uma pena que problemas tenham de ocorrer para o Carnaval do Rio avançar”. A propósito: “Página infeliz de nossa história”, o título aí no alto, é verso do samba de Chico Buarque Vai Passar. Tomara.

Com reportagem de Sofia Cerqueira, Pedro Moraes e Luna Vale

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