Cariocas aproveitam o Natal para fazer o bem
Os cariocas que abrem mão da comemoração em família para se dedicar a quem não tem nada ou passa o Natal sozinho em abrigos e hospitais
Fim de ano é época de armar a árvore, enfeitar a casa, comprar presentes, preparar a mesa com uma ceia farta e reunir toda a família, certo? Certo, mas para alguns cariocas a comemoração do nascimento de Cristo representa muito mais do que isso. Imbuídos do que consideram o verdadeiro espírito natalino e de uma comovente abnegação, eles passam os dias 24 e 25 de dezembro festejando, só que de uma maneira diferente e cercados de pessoas que provavelmente nunca viram antes. São voluntários que abrem mão do congraçamento com a família e amigos próximos para dedicar o feriado a fazer o bem. E, para isso, passam a noite e o dia de Natal em hospitais contando histórias e levando alegria a pacientes que em outras circunstâncias se veriam sozinhos, distribuem brinquedos em abrigos para meninos e meninas que nunca tiveram a chance de desembrulhar um presente, arregaçam as mangas e vão para a cozinha preparar refeições para moradores de rua ou se vestem como o bom velhinho para fazer a alegria da criançada. Outros se aventuram por territórios que a maioria das pessoas prefere evitar, como as áreas que reúnem viciados em drogas, para levar um pouco de conforto a pessoas que muitas vezes, de tão dopadas, nem sequer têm condições de agradecer. “O que a gente recebe em troca, seja um sorriso ou um olhar de surpresa de quem não esperava nada, já vale qualquer esforço”, resume um desses benfeitores, o consultor de marketing Alessandro Mendes. Nas próximas páginas, VEJA RIO publica oito histórias em que o desejo de fazer o bem se transforma no genuíno sentido do Natal. Boas-festas!
“Procuro dar aos outros o que não tive.” Limachem Cherem distribui presentes às crianças de Realengo no dia 25
Filho de um ferroviário e de uma dona de casa, Limachem Cherem, de 59 anos, nasceu em uma família com catorze irmãos e nunca soube o que era Natal durante a infância. Na zona rural de Itatiaia, onde vivia, as noites de 24 de dezembro eram como as outras do ano, e os únicos brinquedos de Cherem eram improvisados com qualquer coisa que lhe caísse nas mãos. Antes de se mudar para o Rio, aos 21 anos, viveu na rua, vendeu verduras, engraxou sapatos e trabalhou de copeiro. Depois de se empregar nas obras da Linha 1 do Metrô, começou a fazer teatro e acabou participando de peças infantis. Em uma delas, encarnava o bom velhinho. Fez tanto sucesso que passou a ser convidado para participar de eventos e ir à casa de amigos animar os festejos natalinos. Com outro amigo rechonchudo, que também fazia teatro, fundou em 1992 a Escola de Papai Noel do Brasil, que já formou mais de 400 profissionais que trabalham em shoppings da cidade. Para ele, entretanto, a função vai além de desempenhar satisfatoriamente o personagem. Todos os anos, na manhã do dia 25, ele veste a fantasia para fazer a alegria da criançada em Realengo, onde já morou. A bordo de uma charrete, distribui 500 brinquedos que compra ao longo do ano. “Procuro dar a essa meninada o que não tive. É a minha maior alegria”, vibra Cherem, que ainda visita, como voluntário, as crianças em tratamento no Hemorio. “Demorei muito para saber o que era o Natal. Quando descobri, quis viver essa experiência plenamente”, explica. A meninada de Realengo e do Hemorio agradece.
“Elas até esquecem que estão em um hospital.” Pablo Moreira conta piadas e brinca, na véspera de Natal, com crianças internadas
Até quatro anos atrás, o carioca Pablo Tavares Moreira, de 31 anos, sonhava com um futuro profissional em uma grande agência de propaganda. Matriculado no último ano da graduação de publicidade e trabalhando como bancário, decidiu fazer aulas de teatro e um curso de palhaço, apenas como hobby. Uma visita ao setor de quimioterapia do Hospital Estadual da Criança, em Vila Valqueire, caracterizado como o personagem Marrom Bombom, entretanto, mudou sua vida. “É isso que eu quero fazer até ficar velhinho. Não há dinheiro que pague o sorriso de uma criança que vive em um leito hospitalar”, diz, com uma bolota vermelha no nariz, jaleco estilizado, estetoscópio no pescoço e um martelo de plástico na mão. Fã do médico americano Patch Adams, personagem do filme de mesmo nome, interpretado pelo ator Robin Williams, criou a trupe Miolo Mole, que reúne voluntários como ele, para visitar a ala infantil de instituições públicas e privadas do Rio. Na véspera do Natal, dia em que os pacientes mirins costumam ficar ainda mais tristes, ele dedica três horas à diversão das crianças que não tiveram alta médica. “É uma coisa mágica, porque, nem que seja por alguns minutos, elas embarcam na brincadeira e chegam até a esquecer que estão em um hospital”, entusiasma-se o voluntário, que hoje vive de dar aulas de teatro. Sonhos para o futuro? Transformar sua trupe em um grupo enorme, capaz de levar alegria a todos os pequenos pacientes dos hospitais da cidade.
“Vou lá para doar e percebo que quem ganha o presente sou eu.” Alessandro Mendes faz campanha na internet para arrecadar brinquedos, que distribui a crianças pobres
Na noite de Natal de 2014, o consultor de marketing Alessandro Mendes, de 36 anos, mal participou da comemoração com a família, de tão cansado que estava. Ele tinha virado quatro noites embrulhando e organizando os 4 500 presentes que coletou e distribuiu a crianças de diversos abrigos, orfanatos, hospitais e localidades carentes. Acostumado a ver, desde pequeno, a mãe fazer trabalhos assistenciais, percebeu que havia chegado a hora de criar um projeto social no momento em que foi visitar o filho de uma amiga na instituição Pró Criança Cardíaca, em Botafogo, no ano passado. Decidiu então iniciar uma campanha no Facebook, batizada de Roda de Brinquedo, para arrecadar doações para quarenta crianças. Graças à força da internet e à sua vasta rede de relacionamento, juntou o suficiente para atender 1 500. A ideia, desde o início, era que cada menor recebesse três brinquedos: um para se divertir sozinho, um joguinho e um educativo. “Muitos desses meninos nunca tiveram a chance de desembrulhar um pacote de presente na vida”, diz. “Fico emocionado com a alegria deles. Vou lá para doar e acabo percebendo que quem ganha sou eu”, diz. Neste ano, Mendes irá a vinte lugares, e no dia 24 estará em uma festa para 400 crianças carentes em Jacarepaguá. Ele já se prepara para bater o recorde do ano passado, pois planeja atender 2 500 pequenos felizardos.
“Não consigo ver minha mesa cheia e saber que há gente sem nada.” Lilian Bastos distribui miniceias na noite de Natal
A família da psicóloga Lilian Lourenço Bastos, de 57 anos, já sabe que não pode contar com ela para os preparativos da noite de Natal. Enquanto os três filhos e a neta já estão reunidos em casa, Lilian ainda está percorrendo as ruas da cidade para oferecer miniceias a moradores de rua. Faz isso há doze anos, com recursos próprios. “Não consigo ficar parada sabendo que minha mesa está cheia e há pessoas que não comeram nada naquele dia”, diz a psicóloga, que também carrega no carro alguns brinquedos para o caso de encontrar famílias com crianças. A atividade no dia 24, no entanto, começa bem mais cedo. Secretária-geral da Cruz Vermelha, Lilian, mesmo em férias coletivas nesta época do ano, costuma distribuir brinquedos em um abrigo para menores acompanhada de outros funcionários da instituição, na parte da manhã. O trabalho prossegue nas ruas do Centro, à tarde. “As festas de fim de ano só têm razão para mim se forem assim”, diz. A história de Lilian com o voluntariado surgiu na adolescência. Ela deu aulas de inglês gratuitamente, depois rodou o país com o Projeto Rondon e hoje dedica a vida à instituição onde trabalha. Ali, organiza o recolhimento de donativos e as ações de distribuição, além de estimular cursos de primeiros socorros. “O Natal pode ser muito triste para quem não tem nada. Se cada um fizer um pouquinho, será possível amenizar a dor de muitos e espalhar o espírito dessa festa”, acredita.
“Descobri que minha missão era ajudar os outros.” Miriam Gomes doa refeições, kits de higiene e roupas a moradores de rua
Em 1994, enquanto se dividia entre um emprego como técnica de enfermagem e outro de operadora de telemarketing, Miriam Ferreira Gomes teve a ideia de juntar um pouco do salário todo mês para presentear crianças no fim do ano. No dia 25 de dezembro foi à antiga favela do Coqueirinho, em São Cristóvão, carregada de brinquedos. Em meio à garotada, uma menina mudou a sua vida para sempre. “Ela chegou perto de mim e falou que sua mãe havia dito que o Papai Noel estava doente, mas que, quando me viu, descobriu que ele tinha sarado. Em seguida, ela me abraçou forte”, lembra Miriam, hoje com 51 anos. “Naquele instante, percebi que a minha missão era aquela. Tinha de ajudar os outros”, conta. Nos anos seguintes, ela repetiu a doação. Em 2008, após a morte dos pais, usou a herança na compra de uma casa, na Cidade Nova, onde criou a Ação Social Edmundo e Olga. Além de abrigar a Creche Anjinho Feliz, que atende gratuitamente crianças de 2 a 5 anos, o local ajuda a família de 32 jovens com deficiência e, semanalmente, distribui cestas básicas, medicamentos e brinquedos conseguidos por Miriam através de campanhas na internet e com o trabalho em telemarketing. A cada quinze dias, ela também oferece 100 quentinhas de sopa, biscoitos e sucos à população de rua do Centro. Conhecida como “a tia do sopão”, repetirá a ação, com a ajuda de outros voluntários, na noite do dia 24, quando levará ainda kits de higiene, roupas e brinquedos. “Não poderia ter um jeito melhor de comemorar. Termino a noite me sentindo realizada”, avalia.
“Ao entrar em uma cracolândia percebo quanto sou feliz.” Odinéia Lima visita viciados em áreas carentes da cidade
Funcionária de uma Clínica da Família da prefeitura, a enfermeira Odinéia Quirino Lima, de 47 anos, desde jovem se dedica a ajudar os menos favorecidos. Foi socorrista da Cruz Vermelha, participou da Pastoral da Criança e há dez anos lida com adolescentes em situação de risco ou dependentes químicos na Casa do Menor São Miguel Arcanjo, em Nova Iguaçu. É ali, em meio a meninas e meninos de até 18 anos, que passará a noite do dia 24 como voluntária. Da ceia comunitária, preparada com doações feitas à instituição, participam também o marido e a filha, de 21 anos. “Este trabalho me ajuda a perceber quanto sou feliz e que só tenho a agradecer”, diz. Em sua atuação filantrópica, visita ainda locais onde se reúnem viciados em drogas, como as cracolândias de Manguinhos, do Jacaré e da Maré. Na véspera de Natal, passará algumas horas lá, acompanhada de outros voluntários. “Faço curativos, dou orientações de saúde, mas, sobretudo, converso e levo uma palavra amiga”, conta. O verdadeiro espírito do Natal, para Odinéia, está nessas iniciativas.
“É uma forma da vida nos ensinar como nossos problemas são pequenos.” Maria Clea da Fonseca conta histórias para crianças hospitalizadas como Luiz Miguel Oliveira, de 2 anos
Mãe de três filhas, a professora Maria Clea da Fonseca, de 60 anos, viu a sua vida virar de cabeça para baixo com a chegada da segunda neta, Maria Clara. A menina, hoje com 14 anos, foi diagnosticada com mielomeningocele, doença congênita que no caso dela deixou sequelas motoras. Como a neta precisou passar por várias cirurgias, algumas para controlar uma hidrocefalia e outras ortopédicas, Clea conheceu de perto o sofrimento de uma criança internada. Decidiu então voltar à sala de aula e fazer faculdade de serviço social. Enquanto terminava o último período, no ano passado, teve a chance de frequentar um curso de contadores de histórias. Hoje integra o projeto Viva e Deixe Viver, que faz trabalho voluntário em vários hospitais infantis da cidade. Este será o segundo ano em que Clea passará a tarde de 24 de dezembro no Hospital Estadual da Criança, na Zona Oeste, lendo para internos com câncer, leucemia e outras doenças. “É uma lição de vida. Nós descobrimos que nossos problemas são muito pequenos. Hoje sou realizada de verdade”, diz.
“A alegria de uma criança compensa qualquer sacrifício.” Ana Paula da Cruz prepara uma ceia para trinta famílias carentes
À frente de uma empresa de festas, Ana Paula da Cruz, de 41 anos, pisou em uma favela pela primeira vez aos 23 anos. Na época, emprestou vários brinquedos, como escorregas e casinhas de plástico, a uma comemoração no Complexo dos Bancários, na Ilha do Governador. “Fiquei impressionada com o linguajar agressivo das crianças e as brincadeiras com armas feitas de pedaços de pau”, lembra. A partir daí passou a promover eventos no local a cada quinze dias. Mas a vida de Ana Paula mudou de fato quando uma mãe com sete filhos bateu à sua porta pedindo ajuda. Decidiu então abrir uma creche gratuita. Hoje, a instituição Voluntários Fazendo Crianças Sorrir, que funciona em um imóvel alugado na Freguesia e vive de doações, atende 275 crianças, 36 delas em tempo integral. Com o tempo, ela percebeu que muitas eram tão pobres que nem sequer sabiam o que era uma festa de Natal. Há sete anos, abriu mão de passar a noite do dia 24 com a família para realizar uma ceia comunitária. Desde então, seleciona trinta famílias carentes e, com a ajuda de voluntários, dedica três dias a comprar alimentos e preparar o jantar natalino. A distribuição de brinquedos também é parte da festa. “A alegria das crianças compensa qualquer sacrifício”, acredita.