Nova Holanda: a favela da diversidade étnica e cultural
Um governador que tinha acabado de voltar da Holanda, diversidade étnica e cultural, região com mais africanos no Rio
Segundo o último censo demográfico de 2010, o Complexo da Maré possui cerca de 130 mil moradores. Ele é formado por favelas, bairros e microbairros. Dentro desse mar de gente, está Nova Holanda, favela que segundo Vô Joaquim recebeu esse nome do então governador Carlos Lacerda, que tinha acabado de voltar da Holanda. Outras pesquisas indicam que a favela foi assim denominada por ser construída sobre um aterro, o que é semelhante ao país europeu, que tem grande parte de seu território abaixo do nível do mar.
O Complexo da Maré tem como uma de suas principais características a diversidade étnica e cultural brasileira, além de ser proeminente na área do empreendedorismo. Lá encontram-se vários micro e grandes empreendedores, que melhoraram de vida graças à cultura local de consumir dentro da própria favela. É muito comum andar pela Nova Holanda e encontrar, além de pessoas que nasceram ali, grupos de nordestinos, africanos e até judeus. Pode-se dizer que é o complexo com maior diversidade no Rio.
São muitas as curiosidades em torno do complexo e da favela e ninguém melhor para contar essa história do que os próprios moradores, que vivem lá o seu dia-a-dia e constituem a riqueza cultural da qual falaremos aqui.
Vô Joaquim tem 89 anos. Se não é o morador mais antigo, certamente é um dos mais antigos, juntamente com Vó Jurema. ‘’Eu estou com 89 anos. Tô aqui há 58 anos na Nova Holanda. Criei dez filhos aqui, tenho 25 netos, sete bisnetos e quatro tataranetos. Eu vim da Paraíba, na época não tinha ônibus, o que tinha era o Pau de Arara. Primeiro cheguei na favela do Timbaú, e depois vim para Nova Holanda’’, diz Vô Joaquim.
Ele continua: ‘’O nome da favela surgiu após a volta do governador Carlos Lacerda da Holanda. Quando eu cheguei aqui, era tudo mangue. E os caranguejos morriam na avenida Brasil devido a proximidade do mangue.’’
“A favela começou com palafitas, que são construções de madeira que sustentam as casas no meio dos mangues, rios e mares. Na década de 60, o governo carioca fez as remoções das favelas, que em sua maioria ficavam na Zona Sul, como a favela da Praia do Pinto. Veio gente do Macedo Sobrinho, Querosene, Esqueleto. Eu mesmo vim de Cordovil. Da Praia do Pinto, veio bastante gente. Carlos Lacerda fez cinco favelas ao mesmo tempo: Nova Holanda, Cidade Alta, Vila Aliança, Vila Kennedy e Cidade de Deus’’, conta Vô Joaquim, que trabalha até hoje em sua marcenaria.
Vô Joaquim conta também que foi na década de 60 que surgiu a primeira escola na favela, a Escola Nova Holanda, e que depois disso a favela ganhou grande dimensão. Segundo ele, o assistencialismo por parte do governo e o crescente preconceito no país foram responsáveis pelo abandono social sofrido pela favela. ‘’Essa mesma história que te contei: fui convidado para dar palestras para engenheiros que vieram da Finlândia, Alemanha e Suécia, que queriam saber como foi fundada a Nova Holanda.’’
Algumas vielas depois da casa de Vô Joaquim, conheci Vó Jurema, 81 anos, que veio da região serrana para viver no Rio de Janeiro aos 17 anos e encontrou em Nova Holanda o lugar para criar seus três filhos. ‘’Eu não lembro direito porque vim morar no Rio, mas sei que minha vida foi trabalhar em casa de família. Eu sabia ler e escrever porque onde eu morava era mais fácil ter acesso à escola. Primeiro morei numa favela na Macedo Sobrinho, no Humaitá, mas com as remoções das favelas da Zona Sul, acabei vindo para Nova Holanda, mas maioria das pessoas de lá foram pra Cidade de Deus’’, diz vó Jurema.
Ela criou sozinha seus três filhos em Nova Holanda. Aprendeu a cozinhar com os patrões, pois só sabia ler e escrever. Ainda fala sobre o preconceito racial que viveu nas casas em que trabalhou. “O preconceito sai de dentro de casa. Eu sei que tenho filho preto, sei que poderiam fazer alguma coisa com ele, então eu chamava meus filhos e falava para eles terem muito cuidado. A primeira casa em que eu trabalhei foi em Copacabana. Parecia a casa da Branca de Neve, mas eu não fiquei lá porque minha patroa disse que eu fedia”, relata Vó Jurema, que na época não se importou muito pois achava que tudo era bom. O ato racista que ela conta fazia parte da vida das mulheres negras cujo destino era o trabalho doméstico.
Hoje vó Jurema não trabalha como doméstica, mas costura almofadas e sai de carro com o filho pela favela para vendê-las e ter uma renda extra. Ela conta também que as coisas mudaram muito nas novas gerações e são muito diferentes do que eram no seu tempo. Segundo ela, essas mudanças aconteceram pelo aumento da população na favela, pelos problemas sociais e pelo novo modo de vida do favelado, que muitas vezes é visto de forma negativa quando só está em busca de uma melhor forma de viver e sobreviver.
Desde 1975, Bira vive em Nova Holanda. Foi morar na favela aos dois anos, quando perdeu o pai, depois de uma discussão entre a mãe e a sogra na casa onde moravam em Pendotiba, Niterói. Ele conta que chegou à favela com a mãe em um período de guerra. ‘’Minha mãe não tinha noção do que era uma favela. Ela dizia: ‘Nossa! Que lugar estranho!’ Quando chegamos, começou uma guerra, na década de 80, quando a favela se dividiu em duas partes’’.
Bira diz que a relação entre polícia e estado não era tão conflituosa, mas se tornou assim. ‘’Uma vez, quando eu era criança, briguei perto do posto policial e um policial me chamou atenção. Ele disse que ia contar para minha mãe. Os policiais sabiam quem era quem na favela. Às vezes eles te viam com um ladrão e falavam: ‘Tá andando com esse ladrão por que?’ Esse conflito só começou quando chegou o tráfico de armas, mas isso foi na década de 80.’’
Bira também fala um pouco do surgimento da favela Nova Holanda, mas com um olhar para questão racial. ‘’O surgimento da favela se dá mesmo porque ninguém queria preto na Zona Sul. Por que a Rocinha e o Vidigal ficaram? Qual a cor da maioria das pessoas que vivem na Rocinha? Brancos. Basta pensar na maioria dos garçons e porteiros que trabalham nos bares da Zona Sul, os que moram lá, a maioria é da Rocinha e o fator cor é primordial para essa escolha. No Vidigal, quem pulou no miolo foi o Ney Matogrosso e uma galera artística que se organizou pra ajudar a favela’’, resume Bira, lembrando de uma ação idealizada por Sérgio Ricardo, que contou com o auxílio de nomes como Chico Buarque, que ajudaram os moradores que não queriam sair do Vidigal a construir suas casas.
Sobre as questões raciais que hoje afloram nas redes sociais mundo afora, Bira fala que historicamente o estado sempre atacou mais as favelas consideradas mais negras, como Cidade de Deus, Vila Kennedy e Jacarezinho. ‘’Na favela sempre teve tensão racial. O Parque União, que fica aqui do lado, quase não tem negro. Muitas vezes o morador tem uma rivalidade com outra favela da mesma facção que a dele por uma questão étnica’’, diz Bira.
Bira é paraplégico. Está desde os 22 anos em uma cadeira de rodas após cometer um delito e ser atingido pelas costas por um segurança do estabelecimento onde ocorreu o caso. Depois que ficou paraplégico, politizou-se mais, começou a ler e entender as armadilhas com as quais os homens negros se deparam em seu caminho. Hoje ele prefere dar conselhos aos mais jovens para que não cometam o mesmo erro que ele cometeu no passado. Ele conta que sempre gostou de ler, mas que a consciência só veio com a idade. “O Brasil já assassinou muitos Einstein e Pelé. Eu posso dizer que já conheci muitos gênios, que infelizmente foram para o crime. Se o estado tivesse um olhar diferente para a favela, nossa situação seria outra’’, finaliza Bira.
No Complexo da Maré, estão os maiores empreendedores da cidade. Quando o assunto é favela e empreendedorismo, lá é o lugar onde você pode encontrar todo tipo serviços, uma gama de opções culinárias, sem precisar sair da favela. Muitos desses empreendedores oferecem um atendimento melhor do que em outras partes da cidade.
Foi nesse ambiente de diversidade que surgiu a Rádio Maré de Informações, liderada pelo morador Anderson Santos Lima. O projeto existe há quatroEm anos. “A rádio surgiu com o intuito de oferecer informação à comunidade, para divulgar os vários cursos disponíveis na favela e que muitos moradores desconhecem. Ela também promove a comunicação entre as ONGs, oferece um serviço de achados & perdidos dentro da favela e divulga informações sobre moradores que estão desaparecidos, além ajudar as mães a localizarem as crianças que vivem soltas na favela, jogando bola ou brincando. A gente já localizou muita criança assim’’, relata Anderson
Além da rádio, existe a revista Digital Maré, que divulga informações sobre os comércios locais. Quando George Floyd foi morto e o mundo parou para acompanhar as manifestações, o canal inglês Channel 4 gravou um programa na Rádio Maré de Informações, fazendo uma comparação entre o racismo brasileiro e o de outros países.
Buscando informações sobre diversidade étnica em Nova Holanda, fomos a uma localidade chamada Tijolinho, que concentra o maior número de africanos na favela. Todos os que vivem nessa região são angolanos. O Complexo da Maré abriga a maior concentração de africanos nas favelas do Rio. O tráfico negreiro trouxe para cidade do Rio de Janeiro mais de 1 milhão de africanos, muitos deles vindos da região de Angola. Nas últimas décadas, a vinda de africanos para a cidade e para as favelas cariocas aumentou. Muitos vieram fugidos dos problemas que ainda assolam o território africano, fruto da exploração do continente pelos europeus.
Em Tijolinho, conheci o angolano Tavares, que veio para o Rio depois que sua irmã visitou o Brasil. Em nossa conversa, ele relatou as semelhanças entre o bairro onde ele viveu em Angola e Nova Holanda. Ele conta que muitas pessoas que ele vê nas ruas se parecem fisicamente com seus amigos de Angola. ‘’Eu estou aqui há 22 anos, sou um dos angolanos mais antigos daqui. Eu tinha o sonho de conhecer o Brasil. Minha irmã veio para cá nos anos 80 e eu via as fotos. Todos me falavam que eu tinha que ir para Portugal, mas eu sempre dizia que antes tinha que conhecer o Brasil. Minha família só soube que eu estava no Brasil quando eu cheguei’’, diz Tavares, que enfrentou muitas dificuldades ao chegar aqui.
‘’Eu cheguei primeiro na Vila do João, mas aqui em Nova Holanda já tinham pessoas do meu bairro, que eu não conhecia mas que me conheciam de Angola. Eles foram me buscar lá e me trouxeram para Nova Holanda. Hoje, no Brasil, tenho sete filhos. Aqui tem muitas semelhanças com o bairro onde eu morava em Angola. A guerra acabou, mas ainda tem as consequências, como a luz e outras dificuldades. Eu nunca vi coisas da guerra em Angola que vi aqui. Quando falo de violência, de muita violência, eu vi aqui pela primeira vez, e não em Angola. Na minha primeira semana aqui, eu queria ir embora’’, diz Tavares, que tem um trailer onde vende bebidas, petiscos e promove uma roda filosófica para falar de racismo, desigualdade e cultura.
Tavares relata que, ao chegar ao Rio e ver as dificuldades que os angolanos encontravam na favela, pensou em ir embora. ‘’Eu tinha amigos que estavam aqui há mais de cinco anos e estavam em uma situação mais difícil do que tinham quando viviam em Angola. Eu passava a noite chorando, mas o tempo me ajudou a superar isso. Os filhos que eu tive também me fizeram ficar mais no Brasil.’’ Tavares levanta outra questão interessante: a organização da favela e as semelhanças físicas e culturais dos cariocas negros com seus amigos de Angola. “Esse jeito de falar alto, de churrasco na brasa – só que o nosso é com peixe – a disposição de ajudar ao próximo, o clima e esse jeito que vocês tem de dançar são muito parecidos com o nosso. O jeito de conversar com a pessoa uma vez e ficar amigo também é muito comum em Angola. A aparência física é bem semelhante. Outro dia, na Central do Brasil, fui atrás de um homem porque ele se parecia muito com um amigo meu. Várias vezes eu olho os negros daqui e lembro dos meus amigos e amigas de Angola’’, finaliza Tavares, que conta também que sempre enfrentou o racismo fora da favela.
Esta é a Nova Holanda de Vô Joaquim, Vó Jurema, Bira, Anderson e agora Tavares. Um dos lugares mais ricos em empreendedorismo e diversidade cultural no Brasil. Em Nova Holanda, encontrei até judeus. Encontrei estabelecimentos difíceis de achar fora da favela. O sorriso das pessoas que lá moram renova e ajuda a continuar vivendo, sorrisos muito necessários em lugares nos quais o estado só chega através da segurança pública e quase sempre de uma forma equivocada. Essas pessoas mantêm a História viva. Muitas vezes, ouvi-las contar como nasceu a favela onde moram é melhor do que ler nos livros ou ouvir os acadêmicos. Acho a academia digna e necessária, inclusive ao povo preto e de favela, mas é sempre mais prazeiroso ouvir os especialistas da vida real, do dia-a-dia, os que vieram de longe para buscar uma vida melhor. E escrever suas histórias. Valeu Nova Holanda!