A última lição de Flavio Migliaccio
Ideias suicidas são como uma febre: um indício de que há algo errado e deve-se procurar ajuda
Uma carta de suicídio vazou e circula nas redes sociais, irresponsavelmente e à revelia dos familiares. Cartas de suicídio são, muitas vezes, recados com endereço certo: para o marido que abandonou a esposa, para o pai que não deu atenção ao filho.
“Migliaccio, eu te entendo”, disse o ator Lima Duarte, referência na cultura brasileira do alto de seus 90 anos, em um vídeo tão emocionante quanto doloroso, divulgado após a morte do amigo de tantos combates, desde o início do Teatro de Arena, nos anos 60.
Onde estaríamos errando com Flavio Migliaccio, Lima Duarte e os demais idosos? A carta deixada pelo ator fala do desamparo na velhice e de um descrédito na Humanidade. Um protesto.
Flavio conheceu, como tantos outros colegas, grande sucesso na juventude e respeito profissional na maturidade. Ao longo de décadas, encantou gerações. Aos 85 anos, era ativo: fez uma novela de sucesso no ano passado, ganhou prêmios de melhor ator, tinha projeto de um documentário sobre sua vida e havia acabado de escrever novos textos para o teatro. A carreira, por si só, não parece ter sido a causa de sua decisão.
Então, o que teria levado o ator a tomar atitude tão radical?
Segundo seu filho, Flavio Migliaccio não estaria aceitando a deterioração física característica da senilidade. Como amparar seu envelhecimento irreversível? O suicida, em geral, não deseja se matar. O que ele deseja é matar a dor, a raiva, a doença. Mas a coisa não para aí. Quase 100% das pessoas que se matam tem transtornos mentais: 35% tem transtornos do humor, incluindo depressão; 22% tem problemas com drogas, 11% são esquizofrênicos, 11% sofrem de transtornos de personalidade (personalidade antissocial e transtorno borderline, por exemplo) e 6% tem transtornos de ansiedade.
A depressão é muito mais comum em idosos que em outras faixas da população. Segundo o IBGE, pessoas entre 60 e 64 anos são 11% dos quase 12 milhões de brasileiros diagnosticados com a doença. Esse índice só tende a aumentar com o passar dos anos e o envelhecimento populacional do país. Segundo indica o niilismo da carta de Migliaccio, a depressão deve ter sido a causa de seu ato.
António Guterres, secretário-geral da ONU publicou um relatório sobre o impacto que a pandemia tem em pessoas idosas. “A pandemia está colocando as pessoas mais velhas em maior risco de discriminação e isolamento. Não se deve tratar as pessoas mais velhas como invisíveis ou impotentes”, sentenciou na semana passada.
Não pretendo e nem posso fazer diagnósticos sobre o querido ator. Quero apenas fazer com que a perda de Flavio Migliaccio sirva como oportunidade para alertar a todos. O momento é de empatia. Com a quarentena e o isolamento social, quadros depressivos podem ser desencadeados ou intensificados, se já existentes previamente. Muitos de nós estão evitando ter contato pessoal com pais e avós, sendo obrigados a vê-los por vídeo, mas idosos não tem a mesma destreza com o mundo digital.
Não foi apenas no trato social que a nossa realidade foi violentamente alterada. Infelizmente, estamos em um momento de lutos mal resolvidos. A Covid-19 impede familiares de se abraçarem e se despedirem. O luto por suicídio não é menos doloroso. Cada pessoa que põe fim à própria vida afeta de cinco a dez pessoas. Muitos dos que ficam se sentem culpados. Acreditam que poderiam ter evitado a atitude tão definitiva. É uma injustiça, na medida em que não temos como prever com exatidão o que vai na mente do outro. A única certeza é que, com o orientação psiquiátrica adequada, transtornos mentais que levam ao suicídio podem ser evitados.
Todos os animais tem instinto de sobrevivência. O ser humano não foge à regra. Portanto, suicídio não é nem um ato de coragem, nem de covardia. Ideias suicidas são como uma febre: um indício de que há algo errado. É um sinal de que devemos procurar ajuda e nos tratarmos. Que a perda do querido Flavio Migliaccio e o desabafo de Lima Duarte não sejam em vão.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.