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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Águas passadas não movem a geosmina

Não foi só água no copo. Em janeiro, sopas, comidas com caldo, qualquer ingrediente tinha de ser preparado com água mineral. O prejuízo foi enorme

Por Cristiana Beltrão
13 fev 2020, 18h12

Geosmina podia ser o nome daquela tia distante, que você julgava morta. É tia datada, inconveniente e antiquada, que aperta a bochecha, pede pra você tirar o cabelo dos olhos, critica seu modo de vestir e a música que ouve. Quando você menos espera, ela aparece para te visitar.

Durante o último mês, em todos os bares e restaurantes do Rio, a onipresente Geosmina apareceu no café da manhã, almoço e jantar, só para encher o saco. Cozinheiros descobriram, a duras penas, que não podiam servir sopas, comidas com caldo (nem feijão!), qualquer ingrediente que absorvesse líquidos (massas, arroz…) e tampouco fazer cafés, sucos ou colocar gelo em bebidas sem que o sabor final ficasse intragável.

O fluminense ficou desidratado. Abraçou a fritura, pensou em comer só charque com farofa ou farinha de macaxeira e até em ressuscitar o tomate seco, tão esquecido.

Pobre do nosso povo.

Na Rocinha, por exemplo, os moradores chegaram a pagar R,00 por litro, bem mais do que em vários bairros de classe alta. Imagine, agora, o peso dos galões de água no orçamento de uma comunidade em que a última renda média apurada, mal chegava a R0,00? É duro demais.

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Não, ninguém se tranquilizou, durante o janeiro medieval, com a evolução das análises microbiológicas que procuravam acalmar a população. A água brotava do filtro com sabor de terra. O comerciante ficou com a escolha de Sofia: ter prejuízo no bolso, comprando água também para cozinhar, ou na imagem, ao entregar seus pratos com sabor alterado.

Quando criança – tinha lá uns 11 anos – ganhei de meu pai o livro “O Quinze”, de Rachel de Queiróz. Ao ler o título e a palavra “romance”, tive a certeza de que ganhara o manual que me prepararia para os cobiçados 15 anos de idade. Resmunguei ao saber que se tratava da seca de 1915, e não da bobagem na minha testa. Mal sabia que a prosa de Rachel seria meu primeiro amor sofrido.

Li “em uma sentada” e reguei as páginas com baldes d’água pra dar conta de engolir a descrição precisa dos fatos. A obra nunca me saiu da cabeça, tampouco as notícias que li e vivi nos últimos dias, parte do sofrido romance com o Estado que escolhi para empreender.

Chove sem parar, devastadoramente, em vários cantos do Brasil. Ainda assim, no Rio, vivemos uma contraditória forma de seca.

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Há uns dias o gosto vem melhorando, graças ao tratamento tardio que se arrastou até nossas torneiras. E agora? Viva o Carnaval? Apagou geral? Não. Vem Rachel sugerir outra leitura, ao pé do ouvido. É “O Apolítico”, crônica que escreveu em 1954, tão atual. Como diz um amigo, quando um texto muito antigo poderia ter sido escrito hoje, não é bom sinal.

O apolítico é o tutelado perpétuo, que tem renda garantida, nojo de se envolver e horror a eleição. A ele não interessa saber quem faz o orçamento, quem nos governa ou como viemos parar aqui. Vale lembrar.

Já vivemos agarrados aos favores da Corôa, já nos penduramos na estrutura burocrática da capital, e agora nos vemos dependentes dos royalties do petróleo – energia morta – como se fossem a única esperança. Não chega, não?! Além da óbvia vocação turística, o Rio nasceu para grandes eventos, para a economia criativa, podia ser polo tecnológico e de inovação e tem vocação natural para se tornar a Gisele Bündchen da sustentabilidade.

É bom cobrarmos um PLANO para o Rio de Janeiro porque tia Geosmina não morreu. Mais cedo ou mais tarde, ela volta pra nos puxar o pé.

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