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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Dito erudito: um homem sem polcas na língua

A dificuldade de se escrever coisas leves em meio a tudo que vivemos - e a importância da verdade

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 jun 2020, 10h12 - Publicado em 3 jun 2020, 19h30

Não consigo compor uma polca. Nem metaforicamente. Invejo, carinhosamente, aos amigos que escrevem crônicas engraçadas — “de amenidades” (li isso esses dias e gostei). Não me chamam para um festim nos tempos da peste, como aos personagens de Pushkin e da ópera do russo César Cui que estou tentando montar junto a um bravo grupo de artistas (são sonhadores e esperançosos, como eu). Vejo-me como o total oposto do personagem central de “Um homem célebre”, de Machado de Assis; alí, o tal Pestana tenta sem sucesso compor música da maior seriedade: um quarteto sofrido ou um Requiem para a mulher amada… mas só consegue compor ‘polcas’ alegres. E tornam-se enormes sucessos populares, com títulos popularescos que só aumentam-lhe vergonha autoral. Pior, essa música renegada rende-lhe fortuna e (indesejada) fama. Assim, no meu ‘mundo às avessas’ a mais pura intenção de escrever um blog leve e feliz sempre desagua em assuntos sérios.

E como não ser sério no mundo que nos cerca? (Já pararam para fazer a retrospectiva das duas últimas semanas? Eu parei, e juro que achei que tinha chegado aos melhores do ANO!). Voltar a escrever minhas propostas de protocolos para quando de uma eventual reabertura dos teatros pareceu mais animador, e isso apesar de suas dezenas de páginas e prognósticos difíceis. Precisamos de paz e utopias. Do poema que escolhi abaixo, destaco uma passagem que diz: “Eu vim explorar os destroços. / As palavras são finalidades. / As palavras são mapas. / Eu vim ver os danos que foram feitos / e os tesouros que prevaleceram.”

Isto posto, ia aproveitar para falar das belas transmissões que estão sendo feitas pelos teatros do mundo. Porém, fui surpreendido pela notícia de que o Metropolitan Opera de Nova Iorque decidiu fechar até 31 de dezembro (!). Não sei se todos percebem a hecatombe que isso simboliza. Só não fui ouvir a ópera “Os Últimos Dias de Pompéia” (em busca de um tema atual, claro) porque algumas orquestras da Itália e Holanda começaram a por em prática seus planos de retomada. Alívio maior, uma das casas de ópera de Berlim anunciou que “Ouro do Reno” será em breve encenado ao ar livre, no estacionamento, e, no Teatro Real de Madrid, preparam-se 20 récitas de uma “La Traviata”. Em ambos os casos, o público máximo será de ‘apenas’ algumas centenas e as orquestras, com número reduzido de músicos, cumprirá regras de distanciamento; o uso das máscaras está em discussão. Os espetáculos seriam semi-encenados e sem grandes beijos e abraços cênicos (a época não está para ‘Carmen’!). Não é muito, mas é algo — e ao menos anima meus planos de poder levar “A Flauta Mágica” ou a emocionante “A Raposinha Astuta”, senão ao palco do Municipal do Rio de Janeiro, quem sabe a um dos tantos lugares mágicos que temos na cidade e onde poderíamos fazer ópera e balé ao ar livre (sempre lembro com carinho das duas que fiz na EAV do Parque Lage).

Se ‘Raposinha’, de Janácek, tem a vantagem de passar-se numa floresta, ‘A Flauta Mágica’, de Mozart, é um dos grande títulos do repertório clássico. Existe, aliás, uma importante diferença em o que chamamos de ‘clássico’ e o que é uma obra do período ‘clássico’. A etimologia histórica da palavra é bem interessante: “Classicum” era uma espécie de trompete de guerra que ficava junto às tendas dos generais. Na Roma antiga, o mesmo instrumento foi usado pelos soberanos para convocar os cidadãos ao pagamento de seus impostos, e cada grupo era separado de acordo com seu status social e, mais importante, seu poder aquisitivo. No latim, “Classicus” é também o que pertence a um grupo (classe) ou divisão. Não é de se estranhar que esses ‘grupos’ acabaram sendo chamados de “classes”, nem que tudo que é ‘clássico’ receba uma associação com ‘classe’. Nascia assim o mal do que é o dito erudito. Depois, os “clássicos” eram o melhor a ser estudado e normalmente estavam disponíveis apenas em latim ou grego. A música do século XVIII, em consonância com a estética da época que olhava para a Antiguidade como um modelo, ficou conhecida como período “clássico.” Somente nas últimas décadas do nosso tempo é que a música do século XIX, a do Romantismo e portanto “romântica”, e mesmo de muitos compositores “modernos” até a Segunda Guerra Mundial deixou de ser amplamente descrita como “música clássica” e recebeu o titulo de “música de concerto.”

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Sem os ritmos saltitantes de ‘um homem célebre’, pensei que poderia contar uma anedota. A ópera e o balé têm uma coleção destas mas, no exercício da procura, acabei me deparando com o encontro entre Alexandre, o Grande, e o filósofo, Diógenes. A história é mais ou menos assim: tendo chegado a Corinto, o conquistador foi procurar o filósofo e, encontrando sentado no chão como um mendigo, perguntou se poderia fazer algo para ajudá-lo. “Sim”, afirmou o filósofo, “saia da frente que você está tapando o sol.” O moderníssimo “free speech” — ou ‘falar a verdade aos poderosos’ — é mais do que uma famosa anedota da Antiguidade Clássica: é exemplo do que denominou-se ‘Parresía’, termo que está relacionado tanto ao grego Eurípedes quanto ao moderno filósofo Foucault. Na bíblia, aparece como um discurso “corajoso”, relacionado em grande parte a defesa de uma crença religiosa. Tática política não-violenta, o falar a verdade para os poderosos, pode ser encontrada nas falas de Mandela, Gandhi, Dalai Lama ou Elie Wiesel. Chegamos a isso.

“To this we’ve come”, canta o personagem de Magda Sorel na ópera “The Consul”, de Menotti. Estreada há exatos 70 anos, conta a saga de uma mulher casada com um preso político e que tenta desesperadamente um visto para escapar do país; sua vida está em jogo e todo dia ela vai ao consulado em busca de uma resposta. Diariamente recebe evasivas, negativas ou desculpas burocráticas em intermináveis demandas de novos documentos e papéis. Ela finalmente explode cantando: ”Chegamos a isso?.. Diga-me, secretária, quem são esses homens?.. Papéis? Você não entende? O que devo dizer para que entenda?… Minha vida está em perigo e você me pede por papéis?… Meu nome é: Mulher. Idade: ainda jovem. Cor dos olhos: a cor das lágrimas. Ocupação: esperar, esperar, esperar!!”. “O Consul” talvez ensine que “Parrhesia” seja mais do que liberdade de expressão: fala da obrigação (moral) de se dizer a verdade em prol de um bem maior, mesmo que isso implique um risco pessoal. A arte — seja ela música de concerto, balé, ópera, teatro, cinema, artes visuais, literatura etc. — tem esta função e por isso nós, artistas e públicos, buscamos muitas vezes algo mais que diversão; um compromisso com uma verdade pessoal e maior. Mas eu divago — e continuo longe de compor ‘polcas’.

Fala-se muito mundo afora de uma nova realidade. Talvez, conseguir escrever sobre algo leve nesse momento seja a tal da Utopia: imaginar um mundo melhor — mas será imaginário até quando?

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Diving into the Wreck (Adrienne Rich – 1929-2012)
First having read the book of myths, / and loaded the camera,
and checked the edge of the knife-blade, / I put on
the body-armor of black rubber / the absurd flippers
the grave and awkward mask. / I am having to do this
not like Cousteau with his/ assiduous team
aboard the sun-flooded schooner/ but here alone.
There is a ladder. /  The ladder is always there /
hanging innocently / close to the side of the schooner.
We know what it is for, / we who have used it.
Otherwise / it is a piece of maritime floss
some sundry equipment. / I go down.
Rung after rung and still / the oxygen immerses me
the blue light / the clear atoms / of our human air.
I go down.
My flippers cripple me, / I crawl like an insect down the ladder
and there is no one / to tell me when the ocean / will begin.
First the air is blue and then / it is bluer and then green and then
black I am blacking out and yet / my mask is powerful
it pumps my blood with power / the sea is another story
the sea is not a question of power
I have to learn alone/ to turn my body without force
in the deep element.
And now: it is easy to forget / what I came for
among so many who have always / lived here
swaying their crenellated fans / between the reefs
and besides /you breathe differently down here.
I came to explore the wreck.
The words are purposes.
The words are maps.
I came to see the damage that was done
and the treasures that prevail.
I stroke the beam of my lamp / slowly along the flank
of something more permanent / than fish or weed
the thing I came for: /the wreck and not the story of the wreck
the thing itself and not the myth / the drowned face always staring
toward the sun / the evidence of damage
worn by salt and sway into this threadbare beauty / the ribs of the disaster
curving their assertion / among the tentative haunters.
This is the place.
And I am here, the mermaid whose dark hair / streams black, the merman in his armored body.
We circle silently / about the wreck / we dive into the hold.
I am she: I am he
whose drowned face sleeps with open eyes / whose breasts still bear the stress
whose silver, copper, vermeil cargo lies / obscurely inside barrels
half-wedged and left to rot / we are the half-destroyed instruments
that once held to a course / the water-eaten log / the fouled compass
We are, I am, you are / by cowardice or courage
the one who find our way / back to this scene
carrying a knife, a camera / a book of myths
in which / our names do not appear.

 

André Heller-Lopes,

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Encenador e Professor da UFRJ, é Diretor Artistico do Theatro Municipal do RJ.

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