Cidade cenográfica: Rio reassume protagonismo no mercado audiovisual
Catapultada pelo streaming, cidade vê aumentar em 90% sua participação como palco de cenas das mais diversas produções no último ano
Gravada no fim do ano passado e baseada no best-seller homônimo, a série How to Be a Carioca está prevista para estrear no Star+ em 2023. Ela desembarca no streaming com a ideia de ser um verdadeiro manual de sobrevivência na Cidade Maravilhosa, onde a cada episódio um estrangeiro viverá uma aventura no melhor estilo “gringo” de se adaptar à cultura e às manias locais. A direção é de Carlos Saldanha, o mesmo criador da bem-sucedida animação Rio, e no elenco estão nomes carioquíssimos, como Seu Jorge, Malu Mader, Douglas Silva e Mart’nália. Com seis episódios de quarenta minutos, essa é apenas uma em um rol na casa das dezenas de produções que escolheram o Rio como cenário desde que a pandemia deu trégua. E o foco vai bem além do Leblon, que Manoel Carlos celebrou nas novelas da TV Globo — tramas, aliás, que desde a década de 60 contribuíram para formar a ideia de quem somos e onde vivemos no imaginário de brasileiros e estrangeiros.
A nova e frenética etapa de produções made in Rio tem um olhar diferente da cidade, em comparação com as que vieram antes. “Os criadores observam hoje o Rio com um viés cada vez menos de cartão-postal”, avalia Erick Brêtas, diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo. “Muita gente tem se lançado nos subúrbios, na Zona Norte, na Baixada Fluminense. São múltiplas imagens de diversos pontos de vista.” Embalando a indústria do audiovisual após anos de desaceleração por falta de fomento e financiamento, o streaming vem sendo um motor essencial para reconduzir o Rio ao protagonismo. E não é só por sua exuberante paisagem, onde se contrastam o antigo e o novo, a natureza e o urbano, e as montanhas emolduram o mar, mas também como personagem mesmo. Afinal, como explica Brêtas, à frente da Globoplay, um dos serviços por assinatura presentes no Brasil, a cidade oferece vantagens que se revertem em favor dela. Um fator que sopra a favor é a concentração de autores, produtores, diretores, atores e técnicos nestas praias. Entre 2019 e o fim de 2022, a plataforma estima chegar a 79 produções rodadas por aqui — só neste ano serão 37. Entre elas estão Musa Música, de Rosane Svartman, primeiro musical dos Estúdios Globo com versões para Globoplay e Gloob; O Jogo que Mudou a História, de José Júnior, sobre a ascensão no narcotráfico; e Fim, uma adaptação do livro de Fernanda Torres sobre um grupo de cinco amigos cariocas que rememoram as passagens marcantes da vida deles, dirigido por Andrucha Waddington, seu marido.
A recente chegada de um escritório da Amazon Studios também dá impulso às produções em solo carioca. Em 2022, a Amazon foi a plataforma de streaming que mais filmou no Rio, somando sete títulos, como a segunda temporada de Dom, série aclamada pela crítica que se converteu na mais vista no mundo entre as internacionais Original Amazon. Em seguida vêm Globoplay (cinco), Netflix (dois) e Star+ com How to Be a Carioca, segundo o levantamento da Rio Film Commission, departamento da RioFilme, que é um órgão da Secretaria de Governo e Integridade Pública da prefeitura, responsável por apoiar, facilitar e atrair ao município produções audiovisuais. Desde 2021, a comissão centraliza a aprovação de todas as solicitações de filmagens em praias, praças, ruas e avenidas cariocas. De janeiro a maio, já contabilizaram 3 551 horas de gravação, o que significa um aumento de 90% em relação ao mesmo período do ano passado. Isso inclui de videoclipes a longas-metragens e filmes publicitários, totalizando 143 produções na cidade.
Os dados permitem saber quais os bairros preferidos da turma que pilota a retomada. São eles: Centro, Flamengo, Barra, Copacabana e Santa Teresa. A Zona Sul é a área mais retratada, com 113 produções e 1 224 diárias. “Buscamos criar um ambiente amigável para as produções, permitindo que usem o espaço público e exibam o Rio. Somos uma cidade film friendly ”, define Daniel Celli, coordenador da Rio Film Commission, lembrando que isso traz benefícios sob distintos ângulos. A começar pelo fato de que, uma vez flagrada pelas câmeras com imagens que atravessam fronteiras, a cidade passa a fazer parte do imaginário popular, o que é estratégico. Quanto mais magnetismo exercer, mais se fará girar uma cadeia produtiva que envolve desde a indústria do audiovisual propriamente dita até empresas de transporte, vestuário e catering. “Fora os benefícios indiretos que advêm do turismo que uma imagem positiva pode gerar”, arremata Celli.
A aposta em produções audiovisuais reverbera para muito além do set. “Assim como músicas e arte em geral, elas fomentam um ambiente favorável ao negócio, despertando o interesse de investidores de fora e de consumidores de produtos locais”, explica Rafael Lazarini, criador e CEO do Rio2C, maior encontro de criatividade e inovação da América Latina, que reuniu participantes de todo o Brasil e de mais 75 países em maio. “É o chamado soft power, que tem o incrível poder de aumentar a autoestima e potencializar o ecossistema econômico, induzindo um ciclo virtuoso”, diz ele. Na edição deste ano, o evento organizou mais de 1 200 encontros entre profissionais do mercado audiovisual, sacudindo uma engrenagem composta de gente que busca parcerias para projetos originais, grande parte nos segmentos de ficção, documentários e infantil. Entre os presentes havia uma lista graúda, incluindo representantes da Warner Media, Star+, Amazon Studios, Netflix, Globoplay, Discovery, Paris Filmes e Sony Pictures.
A própria Netflix divulgou no evento sua nova empreitada: um projeto de ficção do diretor Luis Lomenha inspirado na chacina da Candelária. A produção, sem título definido, vai narrar as 36 horas que antecederam à tragédia, ocorrida nos anos 1990, pelo ponto de vista de quatro crianças vindas de lares desestruturados que encontram nas ruas do Rio uma forma de tocar a vida. Um dos destaques do canal de streaming hoje, aliás, é Maldivas, que conta a rotina de moradores de um condomínio de luxo na Barra. Estrelada por Bruna Marquezine, Carol Castro e Sheron Menezzes, a série registrou mais de 11 milhões de horas vistas em todo o mundo, o que a alçou à quinta colocação no top 10 dos programas de língua não inglesa da Netflix. A Paramount+ também investe em terras cariocas, com As Seguidoras, em parceria com o Porta dos Fundos, lançada em março, e Adriano, Imperador, com estreia marcada para 21 de julho.
Uma boa notícia é que incentivos para aumentar o exército criativo munido de câmeras na mão e ideias na cabeça estão afluindo. Em março, a RioFilmes lançou o maior investimento em audiovisual da história da cidade — por meio de editais, serão injetados no setor ao longo do ano um total de 55 milhões de reais. O valor é 176% superior ao de 2021. O órgão também promete acelerar os estudos para a implantação do Distrito Criativo Carioca, entre Barra e Jacarepaguá — e o Polo Cine Vídeo deverá ser peça fundamental do projeto, com estúdios já existentes modernizados e outros a serem construídos, todos com infraestrutura de ponta. “Os lugares de filmagem são escolhidos não só pela beleza, mas pela logística. E o Rio pode ser muitas cidades: Paris, Lisboa… Até a novela Pantanal tem filmagens externas feitas aqui”, lembra Daniel Celli. Aguardem as cenas dos próximos capítulos.