“Recebi 22 ameaças”, diz Eliana Sousa Silva, da Redes da Maré
Coordenadora da ONG Redes da Maré, a ativista é a curadora do Festival Internacional Mulheres do Mundo (WOW), que traz a favela para o centro dos diálogos

Formada por quinze favelas, às margens da Baía de Guanabara, a Maré guarda mais de 47 000 domicílios, o que faz dela o nono bairro mais populoso da cidade, maior do que 96% dos 5 571 municípios do Brasil. Com uma vida que vai muito além dos episódios frequentes de violência, o complexo estreia como palco do festival inglês Mulheres do Mundo (WOW), presente em 23 países, que terá noventa mesas de debate, além de oficinas, shows, feira de empreendedorismo e campeonatos.
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Pelo terceiro ano, a curadoria foi feita pela Redes da Maré, ONG fundada pela paraibana Eliana Sousa Silva em 2007. De um curso pré-vestibular comunitário, evoluiu para uma organização que tem hoje oito frentes: são 42 projetos que, em 2024, impactaram diretamente a vida de 7 000 pessoas. Aos 63 anos, a ativista não arrefece, mesmo diante das adversidades, sendo uma das grandes vozes de direitos humanos e urbanismo no país. Pouco antes de mergulhar na programação do evento, que acontece de sexta (24) a domingo (26) e terá presença da escritora Conceição Evaristo e da pajé Japira Pataxó, ela conversou com VEJA RIO sobre uma visão menos fragmentada da cidade.
O que significa ter um festival dessa grandeza na Maré? Realizá-lo aqui é reconhecer esse território de quinze favelas — que é bairro há trinta anos. Uma região que recebe de forma desigual os investimentos e as políticas públicas, estigmatizada pela violência, mas onde moram 140 000 pessoas. A pauta focada nas mulheres também é muito significativa, dado o protagonismo que elas têm nas questões mais básicas.
Em qual sentido? Elas são a base das transformações que vemos acontecer: inventam formas diferentes de viver e organizam as lutas. Por isso, é tão importante termos um espaço para dialogar e conhecer novas experiências — de outros países, de áreas rurais e até das florestas —, além de dar visibilidade ao que estamos fazendo nas favelas, onde vive um terço da população do Rio.
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Como foi a sua adaptação ao chegar na Maré durante a infância? Venho de um lugar na Paraíba chamado Cariri, que passou por um período de seca prolongado, fazendo meus pais migrarem nos anos 1970. Cheguei com 7 anos sem nunca ter visto chuva. A gente estava em busca de água e viemos para a Nova Holanda, que não tinha esgotamento sanitário. Mas foi a partir das ausências que construímos os processos para tentar mudar essa sociedade estruturalmente desigual.
Como a Redes da Maré se desenvolveu? Quis entender como o conceito de desigualdade atingia concretamente as pessoas da favela. O primeiro eixo do trabalho foi a educação. Naquela época, menos de 0,5% da população tinha acesso à universidade. Criamos um pré-vestibular comunitário em 1997 e no primeiro ano tivemos aprovação de 30% dos alunos. No ano passado, cinquenta jovens foram para o ensino superior. Temos ainda projetos voltados para a alfabetização de mulheres e melhoria de letramento.
Aluna do pré-vestibular, Marielle Franco já dava indícios do caminho político? Os estudantes recebem uma formação que vai além das disciplinas específicas, com a missão de ampliar os horizontes, criar pensamento crítico e buscar lugares de ativismo. A Marielle integrou a nossa segunda turma e foi a primeira a despontar nesse processo, vivido também pela vereadora Monica Benício e pela deputada estadual Renata Souza.
Quais são as outras frentes? Temos quinze iniciativas, entre elas, projetos de arte, equipamentos que cuidam de pessoas em situação de rua e de usuários de drogas, e a Casa das Mulheres da Maré, que defende os direitos e cuida de episódios de violência de gênero. Estudamos também a qualidade de vida e questões relacionadas ao meio ambiente — estamos na região onde se respira o pior ar do Rio de Janeiro, além de ter intensas ilhas de calor, que escancaram outros tipos de desigualdade na cidade.
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Como funciona a metodologia criada para acompanhar as operações policiais? Crescemos naturalizando o que não deveríamos: grupos civis, pessoas armadas nas ruas, violência policial… Entrevistei representantes de todas as áreas, além de moradores, e percebi que a segurança pública não é vista como um direito constitucional, assim como saúde e educação. A relação com a polícia não é de proteção, mas de medo, pois toda a população é vista como parte das redes ilícitas. Nosso objetivo é mudar essa percepção e garantir um espaço seguro — junto a uma advogada social e a uma psicóloga. Quando começamos, em 2009, não havia um morador que reportava violência; hoje são mais de cem por mês.
Já passou por alguma situação de risco? Uma vez, fui chamada à recepção pois havia um rapaz querendo falar comigo. Quando cheguei, ele tinha um fuzil numa mão e um celular na outra. Avisou que eu deveria suspender as aulas e me buscou à noite, para encontrar um representante do tráfico, que queria fazer perguntas sobre o meu trabalho. Aquilo mexeu muito comigo e decidi iniciar uma psicoterapia de apoio. Esse e vários outros episódios são relatados no meu livro Testemunhos da Maré. Só ano passado, recebi 22 ameaças.
Quais as maiores resistências do poder público quando o tema é a integração das favelas às políticas da cidade? O gestor público deveria trabalhar de acordo com as necessidades da população. Fico indignada que as regiões não recebam tratamento igual, fora o olhar focado em questões eleitoreiras. Projetos para a favela são datados, não terminam, têm má qualidade… Enquanto a gente achar normal algumas crianças ficarem 33 dias sem escola, por exemplo, não vamos ter uma perspectiva global da cidade.
Depois destes mais de quarenta anos de trabalho na Maré, o que ainda precisa mudar? Muita coisa melhorou e muito ainda precisa melhorar. Aumentou o acesso das pessoas às políticas públicas, de uma maneira geral, e o número de iniciativas que proporcionam isso. Porém, não avançamos na qualidade da manutenção desses serviços. Ainda temos um longo caminho a ser percorrido.