Nova geração brota na cena literária carioca, com pluralidade de vozes e temas
Na esteira do bom momento da ficção contemporânea, nomes como Paula Gicovate, Mateus Baldi, Francisco Mallmann, Stefano Volp e Juliana Leite despontam
Quando decidiu abrir uma livraria no Jardim Botânico voltada para a literatura, dias antes de a pandemia virar o planeta do avesso, a editora Martha Ribas avisou a sócia, Leticia Bosisio: “O que vende no Brasil é não ficção”. Seria, portanto, uma empreitada quixotesca. Mas, como em tantos setores da vida, o cenário mudou depois dos fortes sacolejos — e os novos ventos acabaram por favorecer o pequeno empreendimento da dupla.
Durante o isolamento social, o hábito de ler cresceu como havia muito não se via, fomentado pela difusão de clubes de leitura. Houve, em paralelo, o sucesso extraordinário de livros como o premiado Torto Arado, do baiano Itamar Vieira Junior, que liderou o ranking de todas as listas em 2021, alcançando mais de 300 000 exemplares, e os romances da mineira Carla Madeira, que explodiu no boca a boca e vendeu 100 000 unidades de Tudo É Rio e Véspera. E assim, impulsionada por tais números, a ficção nacional contemporânea vive um de seus melhores momentos.
A euforia em torno destes e de outros nomes, como Aline Bei e Jeferson Tenório, ajudou a lançar luz sobre uma qualificada geração de escritores cariocas (de nascimento ou por adoção) que tem chamado atenção, dentro e fora das redes, por pavimentar novos rumos para a literatura.
Essa jovem turma é marcada por um olhar único para a diversidade e para uma multiplicidade de assuntos. Em suas obras, trazem abordagens originais sobre temas como sexualidade, relacionamento, racismo e muitas outras questões sociais. A literatura constitui sua principal plataforma, mas uma parcela também atua em mais áreas de criação artística, como o audiovisual e as artes cênicas. “Há uma busca por temáticas e vozes diferentes e espaço para a pluralidade de narrativas”, observa a agente literária Lucia Riff. “Até pouco tempo atrás, conseguir publicar um autor novato em uma editora já consagrada era um esforço, quase um lance de sorte. Hoje essas casas abriram lugar para esses escritores.”
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Uma das aquisições mais recentes de seu catálogo é Stefano Volp, autor de quatro livros publicados de modo independente por financiamento coletivo. O capixaba de 31 anos, que cresceu em Duque de Caxias, criou o clube de assinaturas da Caixa Preta e a microeditora Escureceu, para resgatar textos clássicos e inéditos de autores negros esquecidos. Formado em jornalismo, ele é ainda roteirista de séries e longas para Netflix e Globoplay. Sua última obra, Homens Pretos (Não) Choram, com contos que tratam da fragilidade da masculinidade e da solidão do homem negro, conquistou leitores como Emicida e Djamilla Ribeiro e despertou o interesse da HarperCollins, que acaba de lançar uma nova edição do livro. Em julho, a editora envia às livrarias o thriller psicológico O Beijo do Rio, antecipado no mês passado para 40 000 associados do clube literário TAG. “É praticamente um bestseller da noite para o dia”, celebra Volp. “O protagonista, preto e bissexual, subverte alguns valores dentro do próprio gênero”, adianta.
A ideia de que grandes sucessos da ficção abrem as portas do mercado para a novidade é compartilhada por gente que há décadas acompanha as idas e vindas do setor. “Há uma receptividade maior e o editor passa a olhar as dezenas de manuscritos com outros olhos, querendo descobrir quem será a próxima sensação”, diz Dante Cid, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).
A movimentação nas livrarias, especialmente nas pequenas, é um bom termômetro para aferir a temperatura da atual fase. Dos dez livros mais vendidos em 2021 na Janela, de Martha Ribas, todos eram nacionais e apenas um de não ficção, na contramão de sua expectativa. “Vivemos mesmo um momento especial”, acredita.
A loja no Jardim Botânico virou ponto de encontro desse grupo de escribas cheio de frescor. Entre os representantes da geração que ascende estão ainda Paula Gicovate e Juliana Leite, ambas publicadas no exterior, e Mateus Baldi, idealizador do portal Resenha de Bolso, com foco na crítica de ficção contemporânea. Aos 27 anos, ele acaba de lançar seu primeiro livro, Formigas no Paraíso, pela Faria e Silva. “Apesar de estar estreando como autor, o Mateus já agita há tempos a cena e junta gente com mediações, curadoria e clubes de leitura”, lembra Martha.
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O début literário começou a tomar forma ao mesmo tempo que Baldi reconhecia sua própria identidade queer. Antes disso, jogou fora duas dezenas de projetos, entre contos e romances. “Estamos vivendo uma era de discursos para todos os gostos, de mulheres, negros, LGBTs que fogem da velha narrativa do homem branco. Só não aproveita quem não quer”, sustenta o autor. Influenciada por uma geração de escritores revelados em blogs e zines on-line, como Clara Averbuck, João Paulo Cuenca e Daniel Galera, Paula Gicovate, de 36 anos, nascida em Campos dos Goytacazes, sente-se integrante de um palco borbulhante. “É uma literatura corajosa e potente, que está sendo impactada pela cidade e por novas formas de se relacionar. Estamos chegando por todas as vias, furando bloqueios”, afirma. Roteirista de programas e séries de TV, como Esquenta, da Globo, e Onda Boa, com Ivete Sangalo, para o HBO Max, ela escreve desde os 15 anos, “de forma obsessiva”, sobre amor e relacionamentos.
Como outros da mesma geração, seu primeiro romance foi traduzido na Espanha em 2016 e agora ela lança, também pela Faria e Silva, Notas sobre a Impermanência, que já está sendo adaptado para o audiovisual. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, Entre as Mãos, romance de estreia da petropolitana Juliana Leite, publicado pela Record, também ganhou tradução na França.
Enquanto escrevia, a autora de 38 anos iniciou os estudos de dramaturgia. Depois de rodar pelos rincões do Brasil com o livro, durante a pandemia montou uma das primeiras peças encenadas virtualmente, Onde Estão as Mãos Esta Noite. “A literatura tem esse lado solitário, enquanto o teatro é colaborativo, depende de todos os corpos e saberes envolvidos”, reflete. Para ela, as redes sociais tiveram papel fundamental na disseminação dessas linguagens. “Sou totalmente a favor de que as coisas aconteçam para além do presencial, para provocar diferentes tipos de encontro.”
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A poesia tem seu lugar nesta onda de renovação, encabeçada por talentos como Luiza Mussnich, de 31 anos, e o paranaense Francisco Mallman, 30, que transitam com toda a desenvoltura no mundo virtual, onde suas obras atraem a curiosidade. Com mais de 31 000 seguidores no Instagram, Mallmann, que mora no Rio desde o ano passado e atua entre a escrita, a dramaturgia e a performance, lançou agora seu quarto livro, Tudo o que Leva Consigo um Nome (José Olympio). “Para mim, é vital disseminar cada vez mais a cultura nas redes”, diz.
Jornalista e roteirista de documentários, Luiza é autora de quatro livros pela 7Letras, sendo o mais recente, Tudo Coisa da Nossa Cabeça, uma coletânea de listas em forma de poemas, que percorrem dos temas mais banais aos políticos e filosóficos. Já viralizou. “Brinco que as redes, em vez de álbum de família e amigos, são uma espécie de portfólio, onde postamos as coisas que fotografamos e exercitamos a escrita. Tornou-se um lugar onde pessoas e as palavras também se encontram.” E que palavras.
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