“Me senti um estrangeiro”, diz Ailton Krenak

O ativista indígena reflete sobre o primeiro ano na Academia Brasileira de Letras e compartilha sua visão sobre o futuro

Por Renata Magalhães
20 jun 2025, 09h00
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Ailton Krenak: “O Rio abraça povos do mundo inteiro e tem uma herança africana muito forte. Ainda que, muitas vezes, isso seja invisibilizado”  (Eduardo Fujise e Gideoni Junior Itau Cultural/Divulgação)
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Aos 71 anos, Ailton Krenak acaba de voltar de sua primeira viagem para a França, onde lançou traduções de Futuro Ancestral e A Vida Não é Útil — fenômenos de venda da Companhia das Letras — junto a outros títulos de sua autoria, como Ideias para Adiar o Fim do Mundo e O Amanhã Não Está à Venda.

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Nascido em 1953 no Vale do Rio Doce, Minas Gerais, o líder indígena se destacou como ativista socioambiental, filósofo e escritor, e chegou à Academia Brasileira de Letras no final de 2023, onde desenvolve o projeto Língua Mãe, uma plataforma sobre a diversidade linguística do Brasil. Com quinze livros publicados e 500 000 exemplares vendidos, Krenak estará na programação da Bienal do Livro, em mesas no sábado (21) e no domingo (22), abordando assuntos como o impacto das mudanças climáticas, uma de suas principais bandeiras.

Como avalia o seu primeiro ano na ABL? Estou usando a minha cadeira para divulgar os idiomas nativos do país. Existem muitos autores indígenas, homens e mulheres, inclusive uma expressiva juventude, escrevendo em suas línguas maternas. Elas ainda estão limitadas a um nicho mais ligado à educação, e quero compartilhar isso com os meus colegas. A diversidade linguística é o que enriquece a poética e o imaginário.

Como você foi recebido pelos seus colegas da academia? Com um misto de estranhamento e, ao mesmo tempo, curiosidade. Desde que foi cogitada a minha entrada, me senti um estrangeiro. Mas não é só a língua portuguesa que se fala no Brasil, e está na hora de enriquecer esse repertório. Minha estreia foi em uma conferência interna negando a ideia de que a natureza está separada da minha pele ou da sua. A plateia fez uma festa e saudou como uma novidade muito bem-vinda.

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Acredita que a academia está acompanhando a transformação dos tempos? Houve uma época em que metade dos membros eram diplomatas e embaixadores. Estamos trazendo pessoas novas do ponto de vista etário, de classes sociais ou perspectivas de mundo, a exemplo do que fazem Gilberto Gil e Fernanda Montenegro. Vamos ter um espaço mais plural.

O que significa ser um imortal? Nunca me esqueço de que estamos aqui para morrer. O que resiste são as obras, não nossa experiência como pessoa.

Como é a sua relação com o Rio de Janeiro? A Baía de Guanabara faz parte de uma mitologia dos povos originários: é o lugar onde a vida teria origem, uma gênese da presença humana nesse continente. A cidade abraça povos do mundo inteiro e tem em sua composição uma herança africana muito forte — ainda que, muitas vezes, isso seja invisibilizado. A religiosidade e o sincretismo fazem parte da alma do Rio.

Vê uma conexão espiritual entre a cidade e os saberes ancestrais? Quando vamos para os Estados Unidos ou para a Europa, nos sentimos como um corpo estranho. O que nos acolhe em um lugar é a cultura, que cria uma camada protetiva para sermos respeitados em nossas singularidades. É a marca de ancestralidade que os antepassados deixaram de legado ao presente.

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O que gosta de fazer por aqui? Visitar o Jardim Botânico ou o Aterro do Flamengo. Já a praia, não é onde dedico meu tempo. Raramente, por conta da agenda, consigo fazer essas coisas simples que me dão alegria. Vinícius de Moraes teria dito que veio ao mundo a passeio; não posso repetir essa frase.

Qual a expectativa para a Bienal do Livro? Terei a oportunidade de estar com o Dr. Drauzio Varella, alguém que também não tem tempo de pegar sol na praia (risos). Ele é um observador da nossa realidade e produz muito efeito enquanto cientista. Vamos falar sobre o conhecimento em uma sociedade tão complexa como a nossa.

Assunto importante em tempos de negação da ciência… O negacionismo é o ambiente perfeito para os mal-intencionados. O conhecimento foi confrontado como um campo de disputa, como se houvesse lados. Não existe opinião quando se trata de ciência; não existe cientista de esquerda ou de direita.

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Em um esquenta para a COP30, as mudanças climáticas também serão tema da Bienal. O que espera deste evento em novembro? É uma agenda extremamente politizada para um tema que deveria ser de interesse comum. Temos dados que comprovam o aquecimento global, as questões migratórias e o aumento dos conflitos. Tudo isso tem a ver com o clima e as pessoas ignoram. Essa deveria ser a pauta da COP30, mas, ao invés disso, vamos discutir se devemos ou não continuar produzindo energia fóssil. Estamos mesmo cegos.

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Como enxerga o futuro? Teremos uma vida mais precária, com crises, de endemias a novas pandemias. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o diagnóstico que mais cresce no mundo é o sofrimento mental, em todas as idades. Pensamos em um “novo normal” pós-pandemia, mas é como se a gente só tivesse trocado de enfermaria. Os ricos estão cada vez mais paranóicos e os pobres, mais carentes.

O que diria para quem considera sua visão muito catastrófica? Diria que estão certos (risos). Mas também pediria que considerassem o que foi dito pelo secretário-geral da ONU, António Guterres: se continuarmos consumindo e aquecendo o planeta, a humanidade estará marchando para o inferno. Maior potência mundial, os Estados Unidos não estarão na COP30, mas sim tentando sabotá-la, renunciando compromissos com a redução da emissão de carbono. Só dá para permanecer otimista se formos idiotas.

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Já passou por alguma ameaça por conta do seu trabalho? Não, fico até surpreso com a meninada, que não me vê como catastrófico. Sou acolhido e celebrado pela nova geração, desenham a minha imagem de bandana nos muros das escolas. Sou tema de clubes de livro e isso me faz sentir verdadeiramente um escritor. Frente aos retrocessos, penso todos os dias em desistir. Mas, no final, é isso que faz a equação se concluir a favor da vida. É o que ainda me anima a sair de casa.

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