Amigas há trinta anos, Marieta Severo e Andréa Beltrão conversam sobre os desafios de gerir o Teatro Poeira
Nos quinze anos do espaço, que ganha exposição, atrizes também falam sobre pandemia, beleza na maturidade, a novela das 9 e cultura na era Bolsonaro
São mais de três décadas de amizade e parceria entre Marieta Severo e Andréa Beltrão, desde que contracenaram na peça A Estrela do Lar, nos anos 80. O encontro artístico gerou um “filho”, o Teatro Poeira, que celebra seus quinze anos neste mês com a exposição Antes e Depois do Espetáculo.
A mostra, em cartaz até março, marca a reabertura do espaço após o início da pandemia e relembra os 166 espetáculos encenados nos dois palcos da casa. Em cena agora, fotos, fragmentos de textos, videoinstalação e uma homenagem aos 300 000 espectadores que passaram por ali, representados por 300 000 palitos de fósforo queimados um a um.
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“Eles são a chama que o teatro acendeu em cada uma das pessoas que estiveram na plateia”, explica a curadora Bia Lessa, que assumiu a exposição após o afastamento do diretor teatral Aderbal Freire-Filho, marido de Marieta e também fundador do Poeira, vítima de um AVC há um ano e meio.
A mostra é apenas um dos trabalhos que as duas põem em marcha em 2021. Após catorze anos juntas no seriado A Grande Família, elas estão no ar novamente na novela das 9, voltam ao palco com a peça O Espectador Condenado à Morte, de Matéi Visniec, e cultivam planos de levar ao cinema a premiada peça As Centenárias. A convite da VEJA RIO, essa dupla muito unida relembra momentos inesquecíveis dessa história.
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O sonho do teatro
Marieta: É uma sensação de vitória incrível. Quando a gente começou, a partir das nossas inquietações, de querer estabelecer uma relação mais próxima com o público, de ser mais senhora do nosso jeito de fazer teatro, não imaginávamos chegar tão longe. Eu estava trabalhando em teatros enormes, com microfone e alto-falante, e tudo bem, mas eu já desejava outra coisa.
Andréa: Nessa época eu estava com uma peça que tinha sido enxovalhada pela crítica, mas ela acontecia no CCBB, que tem um perfil de excelência dos espetáculos e está sempre lotado. As pessoas iam para lá, não interessava o que estivesse em cartaz. E os dois assuntos, o meu e o da Marieta, viraram um desejo só: fazer um teatro que passasse por cima de certos dogmas e opiniões solitárias, que tivesse um perfil e se tornasse referência de qualidade.
Marieta: No início pensamos até em comprar um trailer para ser o camarim e botar um tablado. A ideia era resgatar o fazer teatral, próximo do público, sem compromisso. Vamos fazer do jeito que a gente pode e do jeito que a gente quer.
Andréa: Um fazer bem livre, sem se preocupar com a agenda do teatro, dos atores. A ideia era ter menos compromisso com uma certa estrutura muito comercial. Nada contra, mas a gente estava procurando outro rumo.
Aderbal Freire-Filho
Marieta: Foi o Aderbal que encontrou esta casa. Ele morava perto e sempre passava em frente. Viemos ver e era perfeita, tinha um galpão atrás, porque pertencia a uma artista plástica. Ele sempre fez a curadoria, formatou nosso sonho, nosso desejo, o que a gente intuía e pensava.
Andréa: Somos três no Poeira: eu, Marieta e Aderbal. Os projetos de fomento, como o Ponte Aérea e o Artista Residente, entre outras iniciativas de formação, também foram idealizados por ele.
Marieta: Esse sonho de ser de um grupo foi concretizado aqui. Eu fui formada por uma geração de grupos, como o Teatro Oficina e o Arena, e a Andréa também, com o Asdrúbal Trouxe o Trombone e o Manhas e Manias, do qual ela participou. Este agora é o meu grupo…
Andréa: …sim, de três. E será para sempre um grupo de três. O Aderbal tinha feito todo o projeto da exposição, que seria só no Poeirinha, já que as peças continuariam em cartaz. Tudo foi pensado antes da pandemia.
Pandemia
Marieta: Veio o novo coronavírus, veio o AVC do Aderbal, e a vida mudou. Vimos que realmente seria muito difícil esperar pela recuperação dele e começamos a pensar em quem seria a pessoa que poderia assumir. E a pessoa que é ligada às artes plásticas, às exposições e ao teatro é a Bia Lessa.
Andréa: Resolvemos ampliar a exposição. Já que vamos reabrir o teatro, faremos um barulho forte. É um ato de resistência, é uma reinauguração, é uma celebração.
Marieta: É quase insuportável de emoção estar aqui. São duas mulheres batalhando diariamente, com milhares de problemas que precisam ser vencidos a toda hora em um teatro, que não faziam parte da vida da gente.
Andréa: Não sabíamos como funcionava uma bilheteria, não pensávamos no papel higiênico do camarim. No início, era uma loucura.
Investimento e desafios
Andréa: Acham que a gente comprou a casa com a Lei Rouanet. Não! Foi investimento pessoal de nós duas. Aí com tudo já pronto, um amigo nosso, dono de teatro, veio assistir a uma peça e, no final, disse: “Lindo, mas vocês não fizeram conta. Teatro só se paga com mais de 260 lugares. Quantos vocês têm?”. Tínhamos 180! Esse dia foi um marco. Ainda bem que a gente não sabia, senão acabaríamos não realizando. Uma vez a gente fez a conta de quanto investimos e prometemos nunca mais fazer essa conta. É que nem filho, você não fica contando quanto vai custar a faculdade, a escola, a alimentação. Você segue em frente.
Marieta: É desmedido o prazer que isso dá para a gente e a importância que tem na nossa vida. Eu me lembro muito bem da sensação na estreia da primeira peça. De repente era um teatro, as pessoas estavam na plateia. Caramba, a gente fez isso! Somos duas mulheres trabalhadoras. Mesmo trabalhando em novela e cinema, a gente está sempre fazendo teatro.
Um Lugar ao Sol
Andréa: Nossos núcleos não se encontram na novela. Um dia eu cheguei para gravar e vi o nome da Marieta na porta do camarim. Perguntei se ela estava lá, e disseram que sim. Aí pensei: agora acabou o protocolo, não quero nem saber. Foi um dia emocionante, porque a gente não se via havia um ano e meio. Isso nunca aconteceu em quase meio século de amizade. E a menina do protocolo no estúdio ficava dizendo: “Meninas, não pode se abraçar”. E a gente se abraçou, se abraçou.
Marieta: Em cena, a gente não contracenou nenhuma vez. Eu ficava pensando que Vovó Noca (a personagem de Marieta) podia fazer alguma coisa lá, vender uns salgadinhos para aquela gente rica, né? A novela está muito bacana. A Lícia (Manzo) consegue tocar em diversas questões, feridas e complexidades de todas as faixas etárias, além das nossas. Não só das mulheres, dos homens também.
Andréa: Eu adoro o personagem do Cauã Reymond, que tem uma dose de Crime e Castigo. No Zé de Abreu entra um quê de Rei Lear.
A cultura na era Bolsonaro
Marieta: Nunca foi tão sofrido e terrível como agora. Na ditadura, tínhamos uma união, sabíamos da importância da nossa atuação. E a gente não conhecia, entre nós artistas, alguém que era a favor da ditadura. Deparar agora com essa manifestação explícita de apoio ao que há de pior em qualquer sistema político de um país, e ver isso assumido com orgulho, é assustador.
Andréa: Houve uma escolha pela ignorância, pela agressividade, pela desconstrução, pelo amor às armas. É um cardápio muito sórdido, que a gente não sabia que existia. Ler o jornal e tomar pé das notícias hoje é uma experiência macabra, um pesadelo.
Marieta: Eles conseguiram estigmatizar os artistas. Tenho 75 anos e nunca estivemos nesse buraco. Em outros países, os artistas têm o apoio e o reconhecimento da importância e do que representam para a arte, eles têm o orgulhoso apoio institucional público. Como conseguiram botar a gente nesse lugar?
Beleza na maturidade
Marieta: Eu vou falar rápido porque eu estou além da maturidade, já passei.
Andréa: A Marieta vai viver o maior romance na novela. Paixão tórrida. Ela está fazendo esse modelão “chuteira pendurada”. Não enrola, não. É verdade. Eu sei, sou casada com o diretor (Maurício Farias).
Marieta: Na prática, na pandemia, eu pude assumir meu cabelo branco. Não teria tido essa coragem, essa ideia e esse tempo de me ver com a raiz branca. Foi um momento para a gente se libertar, de poder fazer a unha em casa, de usar uma camisa sem estar passada. A gente desenvolveu essa liberdade pela necessidade.
Andréa: Adoro a praticidade, mas acho legal também esse lado de curtir fazer a unha, de usar salto alto. Gosto das duas coisas, de poder escolher. Acho lindo mulher de salto alto.
Marieta: Glauber Rocha dizia que a prova de que a mulher é superior ao homem é que ela anda de salto alto.
Andréa: Glauber tem toda a razão.
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