“É uma celebração, mas ainda me sinto sozinho”, diz Luciano Vidigal
O diretor e roterista de Kasa Branca é o único carioca dos seis filmes brasileiros que disputam para representar o país no Oscar 2026
Na estreia de Kasa Branca no Festival do Rio, o longa de estreia de Luciano Vidigal conquistou quatro prêmios: melhor fotografia, trilha sonora, ator coadjuvante e direção, o tornando o primeiro cineasta negro da história a conquistar a honra.
Após a rodagem comercial nos cinemas, o filme conquistou ainda duas indicações importantíssimas no Prêmio Grande Otelo, organizado pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais: melhor filme e roteiro original. A organização trouxe mais um motivo de celebração a Luciano, quando na segunda (8) definiu o filme entre os seis finalistas para representar o Brasil no Oscar — o único carioca. O resultado sai nesta segunda (15), à tarde.
A concorrência é forte: o vencedor do Kikito de melhor filme Oeste Outra Vez, de de Erico Rassi; o ganhador de melhor filme no Festival do Rio 2024 Baby, de Marcelo Caetano; Manas, de Marianna Brennand, que conquistou o prêmio do júri na mostra carioca do ano passado; o vencedor do Leão de Prata em Berlim O Último Azul, de Gabriel Mascaro; e o ganhador dos prêmios de direção e ator no concorrido Festival de Cannes O Agente Secreto.
Parte do Nós do Morro desde 10 anos, com 45, Luciano tem a própria produtora audiovisual. Preto, da periferia e motivado a contar a sua realidade por meio do afeto, a TV Zero foi uma forma do cineasta assumir o controle da própria criação e garantir vozes pretas não só na frente, mas por trás das câmeras.
Em entrevista a Veja Rio, o diretor e roteirista conversou sobre o panorama do cinema brasileiro contemporâneo, os obstáculos que enfrenta e o processo criativo por trás do sucesso Kasa Branca.
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Como você se sente com a seleção de Kasa Branca em meio a um ano tão forte para o cinema nacional? O Kasa veio nessa safra maravilhosa. Esse momento sela que nós temos capacidade, potência e talento para estar ali disputando com o sistema mundial. Eu sou oriundo da favela e faço um cinema negro independente, de guerrilha, e sempre busquei uma relação de igual para igual com o cinema brasileiro. A gente tem que democratizar o cinema preto que vem da favela como indústria, também. Então, eu acho que é momento de celebrar.
A gente vive um momento histórico em que há maior espaço para que vozes pretas e periféricas participem da construção de suas próprias, você percebe uma mudança? No Brasil, nós pretos somos a maioria, isso tem que estar na tela e estamos avançando. Tem uma frase do Mano Brown muito boa: ‘Tá bom, mas tá pouco.’ Infelizmente, historicamente, o preto como personagem sempre foi um lugar muito estereotipado. Ícones da negritude brasileira, como Zózimo Bulbul e Joel Zito Araújo, trabalharam para que pessoas como eu, Gabito, André Novais, Glenda Nicácio, Luciana Bezerra, entre outros nomes, conseguissem fazer esse barulho.
No Festival do Rio do ano passado, você falou que você sentia falta de narrativas que apresentassem favelas sem violência. Você acha que ao colocar artistas pretos no comando destas narrativas é a chave para chegar nestas histórias? Sim, a mudança surge quando você dá mais espaço. O Kaká Diégues me falou isso no curta que eu fiz com ele: é um novo olhar sobre o cinema brasileiro. É uma busca por narrativas mais coerentes às nossas histórias, do povo para o povo. Imagina, eu sou filho de uma empregada doméstica e posso contar minha história. Eu falo isso com muito respeito aos nossos ancestrais. Quando eu vou escrever uma história, me sinto um advogado de defesa. Começo argumentando contra as acusações que o sistema brasileiro faz sobre o nosso povo. Falo: ‘Putz, isso aqui eu vou defender. Isso aqui é uma mentira, isso aqui não existe.’ É o cinema da verdade, de quem vive.
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A trama de Kasa Branca veio da história real de um amigo seu, o que te motivou a transformar aquela vivência em um filme? Eu escrevo sobre o que me arrebata e me perturba. Essa é a história dos amigos do meu irmão: jovens pretos com uma narrativa de afeto, acolhimento e amizade, foi a primeira coisa que me tocou. Era um corpo jovem, preto e gordo sendo empoderado pelos amigos. Eu queria contar essa história para o mundo. E a trama de uma senhora na fase terminal de Alzheimer é algo que me vejo trabalhando há muito tempo. Juntei as duas ideias e tentei trabalhar a relação do brasileiro com a morte.
Como foi o processo de encontrar esses meninos para o elenco do filme? O Dé era o personagem que mais me preocupava, porque eu queria que fosse menino gordo, preto, talentoso, que tivesse sensibilidade para lidar com esse drama. Até que conversando com o Yuri Marçal, ele me indicou o Big Jaum. Um tempo depois, ele fez uma oficina de direção comigo e coloquei ele para atuar, pensei ‘acho que vai ser’. No dia do teste, o Big Jaum arrasou. A Gi Fernandes também foi um fenômeno na audição, não à toa está fazendo tanto sucesso. Já o Ramon e o Diego Francisco são primos e eu os vi crescer no Nós do Morro. Quando fizeram audição, eu já sabia o que podiam me entregar como atores.
O Kasa foi um dos grandes vitoriosos do Festival do Rio de 2024, com quatro prêmios, incluindo direção. Como foi ser tão celebrado com seu longa de estreia? Foi muito bom para o filme e a gente é carioca, né? A estreia tinha que ser ali. A resposta abriu muitos caminhos, midiaticamente falando. Eu fiquei muito feliz, mas existe o aspecto do preto único. Eu era o único preto na mostra competitiva de ficção e sou, de novo, entre os seis selecionados no shortlist do Oscar. No Festival do Ri,o fui o primeiro diretor negro a ganhar o prêmio. Então, é uma celebração, mas ainda me sinto sozinho. É preciso ter mais espaço e crença no cinema negro, que é muito potente.
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Esse problema parte da produção, na dificuldade destes cineastas conseguirem financiamento, ou de uma questão de distribuição e espaço? Acho que os dois. É uma questão econômica também, a gente sabe que quem ainda domina a economia do cinema brasileiro é uma branquitude. Agora, estou com a minha produtora. É importante ter um CEO e um produtor executivo pretos, para poder realmente administrar e captar esse dinheiro. O que eu acho que está acontecendo e me torna otimista são políticas públicas. A solução está em democratizar esse espaço ainda mais.
Quais foram as principais referências para o Kasa Branca? São muitas, desde as artes plásticas até o cinema. A primeira é o samba, lembro quando escutei Alvorada do Cartola e acreditei que na favela existia a beleza. É uma premissa que eu levo para todos os meus filmes. O trabalho do Kendrick Lamar também se tornou uma referência narrativa. No cinema, muitos movimentos me atraem. Faça a Coisa Certa do Spike Lee é quase uma Bíblia para mim. No Brasil, o próprio cinema novo busca pela poesia, em um sistema mais social. Eu também gosto muito de conversar com a cultura pop. O seriado Atlanta do Donald Glover foi uma influência.
Como foi o processo de criação da linguagem estética do filme? De novo, falando sobre o Cacá Diegues, lembro que ele me falou: ‘cara, quando você senta numa poltrona para ver um filme no cinema e não quer saber da onde o diretor é ou a cor dele, é um filme bom?’ Eu queria que o filme tivesse qualidade. A fotografia, do meu amigo de infância Arthur Sherman, precisava de um formato atraente. É uma história triste? Como subverter isso? Eu queria um filme com cor — atraente tanto na fotografia, quanto na trilha, no figurino e na forma como um todo. Então, busquei muitas referências pop. Moonlight, por exemplo, tinha uma luz ali que eu gostava. A própria série Euforia foi inspiração na maquiagem.
Como surgiu a ideia de fazer essa brincadeira com o nome do filme? Eu queria que essa casa fosse um personagem. Aí teve uma vez que eu vi um menino no Vidigal escrevendo em um muro “kasa branca” com ‘K’. Subvertendo a linguagem e trazendo a gíria como uma coisa original. Qual era a Casa Branca dele? Na verdade, é essa Kasa Branca dentro da favela.
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O sucesso de cineastas pretos e periféricos pode influenciar outros jovens com as mesmas origens e dificuldades a sonhar em fazer cinema? Te respondo seguramente que sim. Quando eu vou na universidade, tem uma juventude que vê o meu trabalho e dos meus companheiros pretos como referência. Eu tenho muita esperança nessa geração. O Brasil precisa investir nesses garotos e garotas para termos um futuro lindo assim na cultura brasileira.
Qual é a sua expectativa para a decisão do selecionado brasileiro ao Oscar? E qual sua visão sobre a pré-lista como forma de angariar discussão para o cinema nacional? É uma boa estratégia, a gente volta a enxergar esses filmes. Eu já ganhei, me sinto vencedor, de verdade. Estar nessa relação horizontal com esses grandes filmes e cineastas que eu admiro é bem doido. Tenho espírito competitivo, sou escorpião, mas independente de qual for o escolhido, acho que a gente vai chegar lá bem.
Por fim, quais são seus próximos projetos? Estou desenvolvendo o Sobre Noix. O filme vai contar a história da minha irmã com a companheira dela, que adotaram uma criança e tiveram que enfrentar muita homofobia para construir essa família. É uma narrativa de amor sobre duas jovens mulheres pretas faveladas. O longa foi um dos 10 projetos brasileiros em desenvolvimento selecionados para o encontro de mercado Cinemundi.
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