“A internet é muito mais perigosa do que as ruas”, diz Vanessa Cavalieri
Juíza titular da Vara da infância e Juventude do rio de Janeiro mostra como o ambiente virtual mudou o perfil dos jovens infratores na cidade

Com a presença do especialista americano Jonathan Haidt, autor do best-seller A Geração Ansiosa, o Vivo Rio sediou no dia 21 de abril o sexto Congresso Socioemocional LIV. Na programação, uma mesa se dedicou aos impactos da internet na adolescência, e nela estava Vanessa Cavalieri, 47 anos, juíza titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro desde 2015, presença também confirmada em agosto no Rio Innovation Week.
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Acostumada a lidar com jovens de classes mais baixas indiciados por roubo e tráfico, ela agora vê crescer os casos de cibercrime com adolescentes de classe média — um fenômeno que já extrapolou os tribunais para a televisão, com séries como Adolescência, sucesso da Netflix. Em uma conversa contundente com VEJA RIO, a magistrada falou sobre o papel dos responsáveis, das escolas e das empresas de tecnologia neste cenário.
O que mudou no perfil dos infratores, desde que você assumiu o cargo no Tribunal de Justiça do Rio?
Até pouco tempo eram adolescentes de uma classe socioeconômica baixa, com falta de acesso a políticas públicas básicas, de família analfabeta ou analfabetos funcionais, e moradores de comunidades. Depois da pandemia, surgiu um tipo que não costumava ir ao judiciário como réu: a classe média. Meninos de colégios particulares, com familiares presentes, que não são vulneráveis. E que começaram a cometer atos bem mais graves do que um roubo de celular.
Que tipo de infrações? O crime cibernético. Desde ofensas como racismo, homofobia e misoginia até casos de pedofila, tortura, maus-tratos a animais e terrorismo, com planejamento de ataques em espaços acadêmicos.
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Como a pandemia influenciou essa mudança? No isolamento, muitos passaram a ter acesso ao telefone bem mais cedo, e plataformas como o Discord, que não têm qualquer tipo de moderação de conteúdo, se popularizaram. Somando isso à negligência dos adultos, criou-se o local perfeito para cometer delitos.
De que forma o judiciário está envolvendo pais e responsáveis na discussão? Desenvolvemos o Protocolo Eu Te Vejo, que busca conscientizar escolas, famílias e o poder público, propondo estratégias para combater essa situação. Sou procurada por vários juízes querendo multiplicar esse trabalho pelo Brasil. Também apoio o movimento Desconecta, que propõe o acordo coletivo de não dar smartphones antes dos 14 anos e impedir o acesso às redes sociais antes dos 16 anos.
Como séries como Adolescência e Má Influência ajudam nessa conscientização? Além de trazer o assunto para mais pessoas, elas mostram que o problema não está distante e pode acontecer em ambientes que não são violentos. Essa é a grande questão: os pais protegem — até superprotegem — na vida real, mas não tomam o mesmo cuidado no mundo virtual. Hoje a internet é muito mais perigosa para uma criança ou adolescente sem supervisão do que as ruas.
O desejo por atenção nas redes sociais favorece essa vulnerabilidade? Sim, jovens mais solitários e estigmatizados, que muitas vezes sofrem bullying no ambiente real, acabam sendo facilmente cooptados por comunidades extremistas virtuais. É onde acabam encontrando pertencimento.
Acredita que o ambiente virtual também está desencadeando outros problemas entre os adolescentes, como vimos na polêmica envolvendo o filho de Angélica e Luciano Huck? Nesse caso, houve um cancelamento da menina que foi considerada “culpada”. Ela perdeu um milhão de seguidores, o que é um número absurdo. Essas mães falharam por não perceber o quão nociva é essa superexposição em busca de likes. No final, a jovem vai fazer educação à distância por não ter mais saúde mental.
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Os colégios também têm o dever de monitoramento? Os muros da escola não existem mais. … um dever diferente dos responsáveis; eles precisam mediar os problemas que saem da tela e aparecem no pátio. A moda agora são perfis de “explana”, que divulga todas as “fofocas”, e isso obviamente impacta as relações.
Por isso você foi defensora da lei que proíbe o uso de celulares nas escolas? É um primeiro passo importantíssimo. Agora lutamos pela verificação etária além da autodeclaração, seja no momento em que uma conta é criada e também na confguração do próprio aparelho. Se conseguíssemos evitar usuários com menos de 16 anos nas redes sociais, 80% do caminho estaria andado.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) precisa ser atualizado? O que tem lá é suficiente. Precisamos, sim, de uma lei que regulamente as ações das big techs. Em fevereiro, houve um caso de um menino que ateou fogo em uma pessoa em situação de rua. Tudo foi combinado previamente, a plataforma não avisou as autoridades, e o vídeo ficou no ar por mais de dez horas. O PL 2628 tem esse objetivo e já passou pelo Senado. É impressionante ver a quantidade de lobby das empresas de tecnologia junto aos deputados para impedir a aprovação.
Qual o limite entre atenção ou invasão de privacidade? Não existe privacidade no ambiente on-line. Uma coisa é a sua filha estar trocando mensagens com a melhor amiga. A não ser que algo indique um perigo, você não leria o diário dela… Mas um grupo de WhatsApp com cinquenta participantes não é um lugar privado. Uma conta “dix” com 3 000 seguidores é uma praça pública. O pensamento deve ser: se o seu filho diz que vai sair às dez da noite é seu direito — e dever — perguntar aonde ele vai. A internet segue a mesma lógica da rua.
A redução da maioridade penal é um tema recorrente no debate público. Qual a sua posição? Sou totalmente contra. Existe uma razão neurocientífca: a maturidade do cérebro de alguém de 18 anos não é a mesma de alguém mais novo. Sou favorável à mudança dos prazos máximos de internação do ECA, como muitos juízes brasileiros. Hoje, um adolescente que matou duas pessoas vai ficar, no máximo, três anos encarcerado. Esse tempo deveria ser mais longo.