Era dos filtros: a busca pela estética perfeita nas redes sociais
Ferramentas que eliminam imperfeições ganham impulso no meio virtual e incentivam mudanças reais. Mas os especialistas alertam: cuidado com o exagero
Entusiasta de procedimentos estéticos, a cantora Anitta esteve no consultório do dermatologista Newton Morais sabendo bem o que queria. O objetivo, conforme anunciado em um story publicado em sua conta no Instagram, era preencher os lábios para que eles ficassem tal e qual a imagem produzida por um filtro disponível no aplicativo de seu celular. E assim foi feito. No dia seguinte, ela voltou às redes para dividir com sua audiência certa decepção com o resultado.
“Eu queria mais! Mais pro alto. Vou voltar, doutor”, avisou em tom de brincadeira. Choveram comentários de incentivo e houve até quem tenha seguido seu exemplo. “Você me viciou nesse filtro”, disse uma amiga que também estufou os lábios, numa troca de mensagens publicada pela cantora. Na sequência, Anitta se pergunta: “Ih, gente, agora vai ficar todo mundo andando com a boca igual?”.
As redes sociais, sempre elas, são testemunhas do fenômeno em que celebridades ou não, brasileiras e internacionais, são atraídas para o inesgotável universo dos procedimentos estéticos mirando traços que os filtros do celular lhes desenham no rosto. Eles deletam imperfeições, aumentam e diminuem volumes ao gosto do freguês e capricham na simetria.
Baseados na tecnologia de realidade aumentada, que sobrepõe uma camada virtual sobre o mundo real, esses apps tornam tudo possível na imagem projetada na telinha do celular: afinar o nariz, corrigir a sobrancelha, alterar a cor dos olhos, conferir à pele aquela textura de porcelana e até simular cirurgias plásticas.
Usados desde 2015 no Snapchat, esses filtros embutidos de promessas se popularizaram mesmo depois que o Instagram passou a permitir, em agosto de 2019, que as pessoas criassem seus próprios modelos e os deixassem disponíveis na web para qualquer curioso copiar. Pronto. Deu-se aí a onda de terráqueos comuns aplicando os
filtros de uma constelação que inclui, no Brasil, Carolina Dieckmann, Manu Gavassi, Bruna Marquezine, Cleo, Marina Ruy Barbosa.
Um brincadeira divertida, mas que põe em alerta os especialistas, que enxergam nela riscos físicos e psicológicos. O mexe daqui e dali na imagem alimenta o narcisismo típico da era digital, movido a padrões estéticos artificiais e dificilmente alcançáveis. No limite, pode levar a um distúrbio que já tem até nome – dismorfia Snapchat -, que trata da obsessão para se adequar ao que se entende como perfeição. Uma pesquisa da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, mostra que a turma que mais edita a própria foto são justamente as mais propensas a recorrer às clínicas estéticas.
Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, a última década registrou uma escalada de 141% no número de procedimentos feitos por jovens bem jovens: de 13 a 18 anos. “Nessa fase da vida, o corpo é o principal fator de criação de identidade, quando ocorrem as grandes modificações. E o uso excessivo dos filtros gera uma pressão para que correspondam ao padrão em voga”, alerta Edna Ponciano, do Instituto de Psicologia da UERJ.
As expectativas se tornam tão superlativas que muitas vezes o resultado da cirurgia plástica não as preenche, gerando mais frustração. O Facebook, dono do Instagram, chegou a tirar do ar os filtros que simulavam cirurgias plásticas, como o FixMe e o Plástica, e por um tempo não aprovou outros do gênero – mas voltou atrás.
A pandemia, que tanto chacoalhou hábitos, também intensificou a preocupação estética, principalmente com o rosto. Compreensível nesta era em que os contatos pessoais e profissionais se dão maciçamente por videoconferência, com as pessoas tendo a imagem enquadrada o tempo inteiro em uma tela, enxergando no detalhe as inescapáveis imperfeições.
A consequência foi uma subida de 30% na procura por intervenções durante a quarentena. As preferenciais são na região dos olhos e do nariz. “Os pacientes passaram a trazer para o consultório, como referência do que querem, fotos de seu rosto modificado com esses filtros”, conta André Maranhão, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, que pondera: “É importante equilibrar expectativa e realidade. Não dá para simplesmente reproduzir a mandíbula de outra pessoa”.
Com alguma persistência para assimilar o ferramental básico, qualquer um pode ter um filtro para chamar de seu no Instagram. O primeiro passo é baixar o programa Spark AR Studio no site do Facebook, com instruções em inglês. Para efeitos simples, não é preciso ter conhecimentos técnicos, apenas alguma paciência para aprender a lidar com o software, que lembra programas de edição de imagem como o Photoshop.
“O programa traz alguns modelos que podem ser personalizados com operações simples”, explica a designer Vanessa Dutra, 27 anos, autora do filtro Shallow Now, que viralizou depois de a cantora Paula Fernandes, que gravou uma versão de Shallow, de Lady Gaga, usar, gostar e postar. Uma vez feito o filtro, ele deve ser submetido à aprovação do Instagram, um processo de até dez dias.
Trabalhos mais elaborados, contudo, demandam altas habilidades. E é aí que emerge um novo tipo de ofício, bem afeito a estes tempos: o inventor de filtros, grupo composto de jovens na casa de seus 20 anos, que nasceu dentro da internet. Criada no Rio em 2019, a primeira comunidade de desenvolvedores, a Spark Brasil, já arregimentou mais de 4 000 membros. Um deles, Pedro Leal, 25 anos, é também um dos fundadores da Shift/Shift, uma das primeiras agências especializadas na criação de filtros, que já coleciona trabalhos para marcas como Farm, Green People e Ovomaltine, além de atender personalidades como Cleo e Felipe Neto.
“É um mercado que está alavancando junto com o avanço da tecnologia”, explica Leal, que toca uns seis projetos por mês. Atenta à direção dos ventos, a programadora Julliana de Almada, 31 anos, ensina o caminho das pedras em seu canal no YouTube e vai mais longe: montou uma empresa de criação e consultoria em filtros.
“Os de maquiagem são mesmo os mais procurados, como os de brilho na pele, cílios alongados e suavização de marcas, mas busco tentar puxar para o mais natural possível”, conta ela, o cérebro por trás de cinquenta efeitos diferentes. “Antes, as pessoas se arrumavam para fazer selfie. Agora, jogam o filtro e pronto”, resume o gaúcho Jeferson Araujo, criador dos lábios virtuais que encantaram Anitta.
Os filtros também têm fornecido matéria-prima para as artes. Na hilária mininovela publicada diariamente no Instagram pelo ator Pedroca Monteiro, ele cria tipos amalucados com a ajuda de filtros. O recurso também é tema de um quadro na linha metalinguística do grupo Porta dos Fundos, Família sem Filtros, em que o ator Rafael Portugal interpreta oito parentes confinados juntos.
No fim do ano, a editora Intrínseca lançou Adultos, romance da escritora britânica Emma Jane Unsworth, em que a protagonista, Jenny McLaine, leva uma vida plena aos olhos de seus seguidores. Trabalha para uma revista feminina descolada, tem casa própria e namora um fotógrafo famoso. No íntimo, porém, impera o caos. Uma sátira sobre a vida moderna, a obra lança um olhar sobre o abismo que muitas vezes separa o que as pessoas expõem nas redes e o que verdadeiramente sentem. Vale uma reflexão – sem filtros.
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