“Evoluímos com inteligência e resiliência”, diz Zahy Tentehar
Natural da Aldeia Colônia, no Maranhão, a atriz é uma das curadoras do festival Livmundi, que ocupa o MAM levando a sustentabilidade para o centro dos debates

Zahy Tentehar tinha 19 anos quando veio “tentar a sorte” no Rio de Janeiro. Nascida na Aldeia Colônia, no território Cana Brava, no Maranhão, e caçula de 33 irmãos, ela nunca se imaginou como atriz. Bastou um discurso feito em tupi-guarani, durante a ocupação em defesa da Aldeia Maracanã, no antigo Museu do Índio, para que olhares mais atentos percebessem a vocação. Em 2017, ela estreou na Globo e, desde então, transita entre o cinema, o teatro, a TV e as artes visuais.
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Agora, aos 36 anos, encara um novo desafio: é uma das curadoras do festival LivMundi, que acontece neste sábado (20) e domingo (21) no Museu de Arte Moderna, discutindo caminhos de sustentabilidade. No evento, a multiartista vai apresentar a performance bilíngue Zengar Haw, que resgata sua trajetória.
Durante um bate e volta para ver os filhos aqui no Rio, em meio às gravações em Curitiba do filme de terror Nova Éden, de Aly Muritiba, Zahy falou sobre a força e a resiliência dos povos originários e da relação com a mãe — assunto destrinchado na peça Azira’i, com a qual se tornou a primeira indígena a vencer um prêmio Shell, em 2023.
O mercado cultural ainda resiste em abrir espaço para narrativas indígenas? Estamos em um momento de transformação e os movimentos foram muito importantes para as mudanças de estatísticas. Ainda somos vistos como pessoas sem refinamento social, educacional ou artístico, e ocupar certos espaços mostra que somos indivíduos capacitados. Tenho uma experiência que faz da minha presença por si só importante.
Parceiro do festival, Aílton Krenak participou do processo junto aos curadores. Considera que a entrada dele para a ABL reflete a mudança dos tempos? A classificação de “imortal” representa muito Aílton. Ele é um grande amigo, a quem chamo de tio. Uma pessoa que sabe falar em uma linguagem singular e acessível. Tudo o que ele diz é poesia; até quando fala sobre o fim do mundo é de uma forma esperançosa. Tê-lo neste lugar é transformador. Não por ele ser indígena, mas por ser quem ele é.
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Como equilibrar os saberes ancestrais em uma arte que dialoga com o presente? Se existe um povo atual, é o indígena. Nós dominamos e falamos perfeitamente bem a língua do colonizador, mantendo vivas as nossas tradições. Atrasados são os não indígenas, que estão ancorados em uma cultura que nem é a sua. Foram anos de genocídio, apagamento e silenciamento. Ainda assim, resistimos com dignidade e evoluímos com inteligência e resiliência. Meu recado é: tomem cuidado com os indígenas. Em uma guerra, somos capazes de vencer.
Você nunca quis ser atriz, mas algo na sua infância indicava esse caminho? Fui uma criança introspectiva e tímida. Mas somos exímios contadores de história. Isso é uma forma de atuação dentro dos nossos ritos, que também envolvem canto e dança. Quando usava espigas de milho para brincar de boneca, imaginando cabelos loiros e encaracolados, era teatro. Na época, não tinha esse entendimento, mas era uma formação não convencional. Todos fazemos dramaturgia dentro das nossas realidades.
O que motivou a sua vinda para o Rio? Há uma ideia de que na natureza vivemos em abundância, mas é tudo mentira. No Cerrado, há muita invasão de madeireiros, que ateiam fogo nas reservas e dizimam as colheitas e os animais. Venho de uma família numerosa, tenho 32 irmãos ó que a gente sabe com certeza (risos). Fui a que mais estudou e olha que nem ensino médio eu fiz. Quando tive acesso às redes sociais, encontrei primos que estavam na ocupação em defesa da Aldeia Maracanã, e eles me chamaram para apoiar. Foi quando decidi tentar a sorte na cidade.
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Como foi o processo de adaptação? Muito difícil, foi um choque cultural enorme. Quando cheguei, a primeira coisa com a qual me deparei foi a malandragem. Ficava escabreada, não queria me aproximar das pessoas. Mas o Rio ensina a gente a viver no mundo, foi a cidade que me formou como artista e ativista.
Além de romper limites geográficos, você também cruzou fronteiras comportamentais. Como foi se assumir bissexual? Na primeira vez que fiquei com uma mulher, contei em casa. Foi uma explosão. Ouvi atrocidades, que preferiam uma filha quenga a saboeira, que é a mulher sapatão. Bissexualidade, então, era sinônimo de indecisão. Mas, depois de mim, vários gays e lésbicas apareceram entre os parentes.
Você tem um filho autista. Como lidou com o diagnóstico? Passei os primeiros anos da maternidade me culpando e tentando consertá-lo. Até que chegou o momento em que o aceitei como ele era. Como toda mãe, me preocupei com o futuro dele. Mas meu filho me ensinou muita coisa. Eles já nascem em um lugar de sabedoria, desprovidos de vaidade, que nós “normais” passamos a vida inteira tentando atingir. Autistas são deuses.
Abrir a relação com a sua mãe na peça Azira’i foi assustador? Não, foi libertador. Ela foi uma pioneira, primeira mulher pajé da nossa aldeia, mas de uma geração com a cultura da educação na base da porrada. Isso é um resquício da colonização. O grande desafio foi humanizá-la sem atribuir culpas e mantê-la no lugar sagrado que ela sempre ocupou pra mim. Diferentemente dela, tive a oportunidade de me conhecer dentro da arte, fazer terapia, e consegui romper com essa reprodução de comportamentos.
Sua espiritualidade vem dela? Com certeza. Apesar de não ter uma religião, acredito nos deuses, que eles são donos de tudo o que há na Terra: água, mata, caça… Considero tudo sagrado, desde os meus filhos até um texto que estou escrevendo. Sinto orgulho disso porque há uma escassez de espiritualidade dentro da nossa sociedade. Tudo é muito racional, o sensitivo tem se perdido. Nós precisamos de conexão para existir.