Ai que calor ô-ô-ô: carioca encara provas de fogo com temperaturas em alta
Combinação do fenômeno El Niño com mudanças climáticas fazem termômetros subirem como nunca antes e forçam adaptações na rotina da cidade
Há três décadas, Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer escreveram, em homenagem à “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”, o hino Rio 40 Graus. Pois o mundo girou e aqueceu, fazendo os termômetros alcançar planeta afora temperaturas como nunca antes, o que naturalmente preocupa. E, nos abafados dias de hoje, a canção do passado requer atualização — e é a própria Fernanda Abreu que reconhece isso. Em 17 de janeiro deste ano, a sensação térmica na cidade bateu recorde, alcançando inacreditáveis 59,5 graus em Guaratiba, na Zona Oeste. Sentindo a fervura na pele, a artista disparou em um vídeo publicado no Instagram: “Não são nem 10 horas da manhã e está muito calor. Ao meio-dia vai dar Rio 60 graus, purgatório da beleza e do caos”, cantarolou, informando que não iria ao pilates a pé, como de costume, mas de carro, para evitar a sauna ao ar livre. Com a canícula fazendo deste o janeiro mais quente de todos os janeiros, segundo dados do Serviço Copernicus, agência europeia do clima, os cariocas se põem a fazer variadas adaptações à rotina. “Foi-se o tempo em que o ar-condicionado era considerado item de luxo para os moradores do Rio. Hoje, ele é essencial, tanto quanto um aquecedor no Polo Norte”, compara Antonio Oscar Jr, professor do Instituto de Geografia da Uerj.
A efervescente marca atingida na terceira semana do ano foi a segunda maior da série iniciada há uma década, quando o sistema Alerta Rio passou a monitorar as temperaturas na cidade. O registro perde apenas para o escaldante 18 de novembro de 2023, dia em que a sensação térmica atingiu 59,7 graus. Uma inclemente onda de calor primaveril pairou sobre o Rio na semana em que a americana Taylor Swift aterrissou nestas praias para três shows no Engenhão. A intensidade do fenômeno meteorológico era tanta que acabou custando a vida da jovem Ana Clara Benevides, 23 anos, vítima de exaustão térmica. A escalada radical das temperaturas tem raízes no El Niño, caracterizado pelo aquecimento da água dos Oceanos Pacífico e Atlântico na costa da América Latina. O evento se repete, em geral, a cada sete anos. “O El Niño não está associado às mudanças climáticas, mas o aquecimento global e a concentração de gases do efeito estufa podem potencializá-lo”, explica Antonio Oscar, da Uerj, que lembra: o calorão vai permanecer até meados do ano.
O Rio reflete um cenário global, em que as previsões convidam a uma séria reflexão e não deixam dúvida sobre a urgência de autoridades, e a sociedade como um todo, se mexerem. Um recém-divulgado relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) mostra que, a seguir o ritmo atual, a subida da temperatura do planeta será de 1,5 grau até 2030, podendo atingir 2 graus até o fim do século. No dia a dia, já é preciso ficar alerta — o calor excessivo agrava males preexistentes, sobretudo os cardiovasculares, e contribui para o aumento de epidemias de doenças infecciosas, como a dengue, tal como se observa agora —, o aumento dos casos fez o Rio entrar em estado de emergência (veja abaixo). “Bebês, crianças e idosos têm menos capacidade de adaptação. É preciso redobrar os cuidados com eles sempre que a temperatura do ar for superior à do corpo, ou seja, acima de 36,5 graus”, ensina o médico infectologista José Cerbino Neto, pesquisador do Instituto D’Or e da Fiocruz. “Os primeiros sinais de risco à saúde são pele avermelhada, cansaço, tontura, náuseas e confusão mental”, diz.
Três meses atrás, a prefeitura anunciou uma série de medidas de curto e longo prazo para amenizar os efeitos de tantos graus centígrados. “As Unidades Básicas de Saúde já funcionam como pontos de hidratação, um projeto que inclui a distribuição de água, roupa e protetor solar para pessoas em situação de rua”, lembra Tainá de Paula, secretária municipal de Meio Ambiente. Prometidas para o verão, 25 estações de água potável, fruto de parceria entre a prefeitura e as empresas Mude e RefilMe, aguardam instalação. Outra estratégia municipal é a criação de 30 quilômetros de corredores verdes, além de dois novos parques urbanos: o Maciço da Preguiça, em Botafogo, e o Cesário de Melo, em Inhoaíba. O programa conta com uma providencial ajuda da tecnologia — drones equipados com inteligência artificial vêm sendo usados para mapear, monitorar e lançar as sementes nas áreas a ser reflorestadas. “Com esse recurso, conseguimos acelerar em dois anos o plantio de uma floresta”, calcula Tainá. A fase é de seleção das espécies e preparação de terrenos. “Estudos mostram que bairros reflorestados conseguem reduzir entre 5 e 8 graus de temperatura”, aponta a secretária.
Não é a primeira vez que uma ação de reflorestamento se desenrola em solo carioca. Em 1859, em meio a uma crise de abastecimento de água, o jovem imperador dom Pedro II ordenou a desapropriação da Floresta da Tijuca, por séculos devastada pela exploração de madeira e, mais tarde, castigada pelas plantações de café. Cerca de 100 000 mudas de espécies da Mata Atlântica e de árvores frutíferas de outras partes do mundo foram semeadas por lá. “O imperador sabia que o replantio de árvores ajudaria a recuperar os mananciais, uma vez que muitos rios que abastecem a cidade nascem no Maciço da Tijuca”, conta o historiador Cezar Honorato, da UFF. “Em vinte anos, o espaço estava reflorestado, as águas voltaram e a temperatura no entorno diminuiu. Foi um projeto ambicioso e pioneiro de preservação”, conclui.
Sob o sol inclemente, o jeito é alterar a rotina ou apelar para a criatividade, algo que não falta ao carioca. Muita gente tem antecipado ou postergado compromissos para evitar horários mais abafados e corrido atrás de lugares que oferecem amenidades contra o calor. O Circo Voador, por exemplo, ganhou cenário praiano com a instalação de um chuveiro na área externa, o XuVerão. “Agora, a gente vai para os shows de sunga por baixo”, relata Apolo de Souza, assíduo frequentador. Recém-inaugurado no Aterro do Flamengo, o restaurante Baleia Rio’s implantou um protocolo diferente da matriz paulistana: os atendentes usam short ou saia. “Em duas décadas de profissão, jamais imaginei que trabalharia de bermuda, mas é o mínimo diante da situação”, pontua Laudir Tonietto, gerente-geral da casa. O Gato Café, em Botafogo e na Barra, passou até a pôr cubos de gelo na água dos felinos que povoam o estabelecimento. Mesmo de frente para a Praia de Itacoatiara, em Niterói, o Pitanga precisou recorrer a climatizadores. “Eles soltam uma nuvem de vapor d’água na varanda que ajuda a refrescar”, fala a chef Jess Hulme.
Muitos ajustes aparecem na maravilhosa e calorenta paisagem, alguns inimagináveis em tempos pré-aquecimento. Mãe de um bebê de 7 meses, a psicóloga Jessica d’Escoffier tratou de arrematar um miniventilador para o carrinho do filho, Guilherme, e trocou o horário dos passeios na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para o fim de tarde. “Como sou mãe de primeira viagem, saio comprando tudo o que vejo na internet, e esse ventilador foi uma ótima aquisição”, garante. Uma crescente turma tem compartilhado histórias da via-crúcis diária sob impressionante calor. Morador de Todos os Santos, na Zona Norte, o ator Thiago Gouveia viralizou no X ao relatar como lida com o quadro meteorológico. “Tomo de dez a quinze banhos por dia, mas a água já sai quente do chuveiro. Não tem como ficar de bom humor”, reconhece ele, que adquiriu um tapete refrescante para a cachorrinha Muriel, uma vira-lata de 5 anos. E até o bom e velho leque retornou à cena: vendidos por ambulantes, virou item indispensável entre os foliões dos blocos. Na plataforma de e-commerce Mercado Livre, as buscas pelo acessório dispararam 245% em comparação com o verão que passou. Já as vendas do miniclimatizador (cuja descrição é “um ventilador aditivado com gelo”), hit nas redes, avançaram 75%.
Diante das temperaturas escorchantes e suas consequências palpáveis, governos e organizações vêm buscando meios de frear o aquecimento global. A COP28, principal conferência da ONU sobre o clima, rompeu uma barreira histórica ao agitar a bandeira da transição energética para outras fontes que não os combustíveis fósseis, os maiores vilões do aquecimento. Como já ocorre em Londres e Paris, o Rio estuda restringir a circulação de carros no Centro, priorizando o trânsito de bicicletas. Tudo se desenrola sob projeções que não deixam opção — é agir ou agir. De acordo com o Human Climate Horizons, colaboração entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a agência Climate Impact Lab, o Rio de Janeiro poderá ter 7,35% de seu território engolido pelo mar até 2100, se o planeta aumentar as emissões de gases de efeito estufa, e 4,4% caso a velocidade das emissões mantenha o curso atual. “Não dá para comprar briga com a natureza. Alguns bairros da cidade foram desenvolvidos sobre planícies de inundação, cujo solo tende a ceder. Essa previsão, apesar de alarmante, é plausível”, observa Paulo Rosman, professor de Engenharia Costeira da Coppe/UFRJ.
Outra consequência do calor extremo são as fortes chuvas que tradicionalmente arrasam a cidade, provocando enchentes e alagamentos. Dados do sistema Alerta Rio apontam que este janeiro foi o mais chuvoso de toda a série histórica, iniciada em 1997. Foram dezenove dias de tormenta. “Há uma relação direta entre o aquecimento e os índices pluviométricos, que tendem a ser cada vez mais altos”, comenta Camila Pontual, gerente do Climate Hub, programa de clima do Columbia Global Centers. Em parceria com a prefeitura, o projeto da prestigiada universidade de Nova York incentiva o intercâmbio entre especialistas com o objetivo de elaborar modelos matemáticos que ajudem a criar protocolos de previsibilidade e prevenção. No escritório do Centro, um time trabalha organizando cursos on-line sobre temas como transição energética, ministrados por professores de Columbia e do Brasil, promove debates públicos e fomenta pesquisas acadêmicas em torno da emergência climática. A iniciativa é um bom exemplo da necessária união de variados setores e saberes para atacar o problema. “Grande parte dos prefeitos e governadores só se preocupa com os próximos quatro anos, quando, diante das mudanças climáticas, é preciso visão de longo prazo e vontade política de todos para garantir o amanhã”, enfatiza Paulo Rosman, da Coppe. Nestes dias de Rio 50 graus — ou mais —, não há tempo a perder.
Estado de emergência
Epidemia de dengue atinge recorde de internações e prefeitura mobiliza a população contra o mosquito
Altas temperaturas, que aceleram a proliferação de larvas dos mosquitos, combinadas a frequentes chuvas e à circulação de três sorotipos no Rio de Janeiro levaram a uma alarmante elevação de casos de dengue na cidade. Somente em janeiro de 2024, foram mais de 10 000 diagnósticos, praticamente a metade do contabilizado em todo 2023. Em janeiro, 362 pessoas precisaram ser hospitalizadas em decorrência da infecção — um recorde, de acordo com a secretaria municipal de Saúde. Em decreto publicado no Diário Oficial de 5 de fevereiro, o prefeito Eduardo Paes declarou estado de emergência de saúde pública, determinando a abertura de dez polos de atendimento a pessoas infectadas, além da reserva de leitos para pacientes com dengue. A expectativa oficial é iniciar a vacinação de crianças e adolescentes de 10 a 14 anos ainda este mês.
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O plano de contingência prevê um leque de ações para combater o mosquito Aedes aegypti, como a criação do Centro de Operações de Emergência (COE-Dengue), a entrada compulsória em imóveis fechados e abandonados e o uso de carros fumacê nas regiões com maior incidência de casos. “Não adianta só apontar o dedo para os governantes ou culpar o mosquito. Nós, cidadãos, criamos o ambiente propício para a proliferação da dengue”, cobrou Paes. A população pode fazer a sua parte evitando água parada em recipientes como vasos de planta, pneus velhos, tonéis d’água, piscinas, garrafas e vasilhames. É também essencial limpar periodicamente lixeiras, ralos, bebedouros de animais e outros objetos que possam acumular água. São medidas simples de grande efeito em prol da saúde.