“Cada livro é um recomeço”, diz Ruy Castro
O escritor ganhou o prêmio de livro do ano com O Ouvidor do Brasil: 99 Vezes Tom Jobim, em que traça o perfil de um dos maiores nomes da música
Todos os dias, Ruy Castro acorda cedo e dá uma volta no calçadão do Leblon, bairro onde mora há três décadas com a esposa, Heloísa Seixas. Depois, volta para casa e começa a escrever. As palavras viraram profissão em 1967, como repórter do jornal Correio da Manhã.
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Na função de jornalista, passou por quinze grandes órgãos da imprensa até firmar-se colunista da Folha de S.Paulo, em 2007. Já a faceta de escritor veio à tona em 1990, com Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova (Companhia das Letras), e, desde então, assinou mais de setenta títulos, entre publicações autorais, antologias, organização de edições e traduções.
O mais recente deles é O Ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim, que acaba de vencer o prêmio Jabuti na categoria livro do ano. Por meio de crônicas, ele revela o homem por trás do músico e compartilha reflexões sobre o país. Imortal da Academia Brasileira de Letras desde 2022, o flamenguista de 77 anos conversou com VEJA RIO sobre a nova obra e discorreu sobre a sua relação com o Rio, cidade pela qual é apaixonado.
O que de mais inesperado descobriu sobre Tom Jobim? O homem muito simples que havia dentro do compositor. Tom foi requisitado inúmeras vezes para musicar obras de Hollywood, mas nunca estava “disponível”. Em compensação, passava por um amigo cineasta num botequim em Ipanema e lhe oferecia, de graça, uma canção para seu filme. Dava criações inéditas a qualquer estreante que o procurasse e nunca recusava um convite para participar de discos alheios.
Como foi a seleção para esse perfil biográfico fragmentado? Fiz um levantamento e constatei que escrevi sobre Tom 120 vezes ó na maioria, sobre um homem alerta ao ambiente, à proteção das cidades e ao país, de forma geral. Assim surge a ideia do “ouvidor do Brasil”: aquele que ouve as queixas, as reclamações.
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Pode compartilhar um momento pessoal entre vocês dois? Poucos sabem que fui eu o intermediário entre a Mangueira e o Tom para o desfile que o teve como enredo, em 1992. Ele não aguentava mais ser homenageado porque isso o obrigava a dar um show de graça, ainda pagando os músicos da banda. Aconselhei a escola a deixar claro que não seria preciso fazer nada e que, dessa forma, talvez até compusesse o samba (risos). Ele topou com entusiasmo e aceitou desfilar no alto da alegoria, para minha surpresa.
Que mito sobre Tom gostaria de desmistificar? Acho que já caíram todos: os de que era politicamente alienado, que não queria pagar impostos no Brasil e era americanizado — logo ele! E também que sua obsessão pela ecologia era uma chatice. Hoje todos sabemos que ele estava certo.
O que ele acharia do Brasil se estivesse vivo? Não sei se Tom teria sobrevivido a Bolsonaro. Eram agressões em cima de agressões à sensibilidade, inteligência, vida… Ele não se conformaria com tal grau de selvageria.
Em tempos de redes sociais, uma premiação como o Jabuti ainda é capaz de mudar a trajetória de uma obra? Sem dúvida. Ela já vinha muito bem desde o lançamento, mas um prêmio importante como esse a traz de novo às vitrines. Com a força das redes sociais, uma pessoa passar diante de uma livraria e se atrair por uma capa é a prova dessa relação de amor. Não importa em quantas formas diferentes um livro exista, as pessoas ainda querem ir para a cama com ele (risos).
Acredita que a Academia Brasileira de Letras está passando por um processo de modernização? Desde a fundação, a ABL se modernizou — quando elegeu nomes como João do Rio, Roquette-Pinto, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto, Darcy Ribeiro e Ferreira Gullar. Toda instituição é feita de fases, a atual é mais uma delas. Pertencer à Academia não é ficar em casa se vangloriando, mas frequentar as sessões, participar de debates e aproveitar as oportunidades para trabalhar pela cultura. Onde mais poderíamos visitar a biblioteca de Machado de Assis ou de Manuel Bandeira, nos móveis e na ordem em que os livros estavam arranjados?
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Entre todos os seus biografados, quem foi o mais difícil de decifrar? Carmen Miranda. Ela já havia morrido há cinquenta anos quando comecei e tive medo de não encontrar mais ninguém vivo que a conheceu antes de ir para os Estados Unidos, mas deu certo. Entre os de reconstituição histórica, o que mais me consumiu foi Trincheira Tropical. Havia muitas publicações sobre a colônia alemã no Sul, a italiana e japonesa no Sudeste e as bases militares americanas no Nordeste, mas ninguém tinha escrito sobre a Segunda Guerra aqui — e o Rio era a capital do país. Foi também o livro que me tomou mais tempo: seis anos.
O Rio sempre aparece como personagem de suas obras. Como é sua relação com a cidade? Cada um escreve sobre seu quintal — Jorge Amado sobre a Bahia, Érico Veríssimo sobre o Rio Grande do Sul, Paul Auster sobre Nova York… Meu assunto, modestamente, é o Rio. Ando por suas ruas há mais de sessenta anos e ainda não me cansei de descobri-lo. Já morei na Glória, Flamengo, Botafogo, em Laranjeiras e estou há trinta anos no Leblon. Daqui, só para o São João Batista. Sempre que possível, visito sebos, restaurantes e botequins do Centro.
O que a cidade perdeu do tempo de Garota de Ipanema? Todo lugar perde e ganha coisas com o tempo. Em 1963, a vida noturna estava em Copacabana. Depois mudou para Ipanema e, agora, está em toda parte, pulverizada em esquinas, não mais em bairros. Não se pode querer que as cidades sejam como já foram — Nova York não é mais o que era, nem Paris, nem São Paulo e nem mesmo Botucatu.
Há outro nome como Tom Jobim a ser investigado para um próximo livro? Esse é o problema, não consigo parar de me interessar por novos temas. O próximo, daqui a dois ou três anos, não será sobre um personagem, mas outra época importante do Rio. Cada livro é um recomeço e a melhor parte do trabalho é quando ele ainda está sendo feito — quando cada informação descoberta é recebida como um gol do Flamengo.
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