Benedita Casé Zerbini: “A surdez não me limita”
Aos 35 anos, a diretora e produtora, filha de Regina Casé, estreia em nova carreira, a de atriz, como protagonista do filme '90 Decibéis'
Só depois de fazer o teste e ganhar o papel para viver a personagem principal do filme 90 Decibéis, sobre uma advogada, mãe de um menino de 6 anos, que vai perdendo a audição gradativamente, Benedita Casé Zerbini contou a novidade para a mãe, a atriz e apresentadora Regina Casé. “No começo, ela tomou um susto, o mesmo que eu tomei, e falou: ‘Caramba, é isso mesmo?’ ”, conta a diretora e produtora, filha de Regina com o artista plástico Luiz Zerbini. Rodada nos Estúdios Globo, a produção tem texto de Julia Spadaccini, que, assim como Benedita, também é surda, e está sendo filmado no mês que marca o Setembro Azul, campanha nacional que tem como objetivo dar visibilidade à comunidade surda e aos desafios que ela enfrenta. “Vi que preciso aproveitar minha visibilidade para falar e explicar o que acontece comigo para que outras pessoas possam olhar e se identificar”, conta Benedita, que apresenta o PcDPod, primeiro videocast PcD do Brasil, e codirigiu com seu marido, João Pedro Januário, o programa Pai É Pai, no GNT, que estreou em agosto e conta a história de pais e filhas, todos pretos. Na conversa com VEJA RIO, ela falou sobre os desafios que vem enfrentando nas filmagens, como lidou com o capacitismo na época da escola e o processo de aceitação da sua deficiência. “Evoluímos no sentido da diversidade e de olhar para as pessoas como elas são”, diz ela.
Nunca pensou em ser atriz antes? Talvez isso até já tenha passado pela minha cabeça em algum momento, mas logo em seguida era minado. O fato de eu ser uma pessoa surda me travou em muitos sentidos.
Por quê? Mesmo fazendo parte de uma família inteira que vem da comunicação e das artes, eu tinha uma questão com meu sotaque — é assim que nós chamamos nossa fala. Como não ouvimos bem, temos mais dificuldade de reproduzir os sons. Mas fui amadurecendo, e o mercado do audiovisual mudou muito também. Evoluímos na direção da diversidade e de olhar para as pessoas como elas são. Hoje, a surdez não me limita.
Está gostando da experiência de atuar? Estou amando e me divertindo com o processo todo. Eu me envolvi muito com a história desde o momento em que li o roteiro. Adoro um desafio, e esse projeto abriu uma porta gigantesca.
Antes de começar as filmagens, sua mãe lhe deu algum conselho? Tenho consciência de que ser protagonista de um filme é um passo imenso para quem nunca foi atriz, e ela está me incentivando o tempo todo. Ficou superemocionada e falou: “Vai com tudo, faz do seu jeito, não fica preocupada com a coisa da técnica”.
O volume de gravação é grande? Falei com a minha mãe: “Caramba, é muito texto, como eu vou fazer?”. A personagem tem surdez, mas é importante que eu consiga falar bem. Faço muito esforço para falar, fiz muito tempo de fonoaudióloga. Mais uma vez, minha mãe me acalmou, dizendo que não estou neste papel à toa, e recomendou que eu usasse a minha percepção.
Ser filha de Regina Casé é um facilitador ou um peso em sua trajetória profissional? Como tudo na vida, é bom e ruim. É um privilégio gigante, é óbvio, mas não vou negar que tem um peso imenso também. Se eu fizer isso ou aquilo, vão dizer que só consegui por causa da minha mãe. Até hoje tenho essa insegurança sobre o que os outros vão achar. E tem também o medo do julgamento e da pressão de ter que ser excelente como ela.
O que quer mostrar com o programa Pai É Pai, que acaba de estrear? O João (Januário, seu marido) é um homem preto, e eu assisto de camarote a essa paternidade dele com o Brás, nosso filho. Os dois são muito ligados. Mas a maioria dos nossos amigos pretos não teve pai e, quando teve, é uma relação diferente da desta geração atual, que tem mais diálogo, mais conexão. No caso de filhas mulheres, a distância é ainda maior. A ideia é desmistificar a imagem da paternidade preta, do pai afastado, frio ou ausente.
Como seu pai a influenciou? Sou muito fã e admiradora do meu pai, do percurso dele e de como sua obra foi ficando cada vez mais reconhecida. Eu desenhava muito com ele no ateliê quando trabalhava em casa. Fiz design na faculdade. Meu pai me abriu um olhar para perceber coisas mais profundas e conseguir enxergar beleza nas coisas feias, naquilo a que as pessoas não dão valor.
Sofreu com preconceito na escola? Sim, passei por situações muito difíceis. Tinha gente que fazia mímica comigo, outros gritavam. Eu ficava com raiva e não sabia lidar com aquilo, era constrangedor. Mas não queria chamar atenção, porque acabaria chamando atenção para minha própria deficiência. Então, não falava para os professores que eu não tinha escutado, que ainda estava com dúvida.
O que a motivou, mais tarde, a falar publicamente sobre a surdez? Foi um longo processo de aceitação até eu conseguir tratar abertamente da surdez, contar que usava aparelho e mencionar essa dificuldade de falar. A primeira vez que vim a público cutucar o tema foi aos 30 anos, motivada por uma campanha chamada Surdos que Ouvem, da qual até participei.
Você é uma surda que ouve? Isso. Não escuto nenhum som agudo nem a maior parte dos médios. Só os graves. Me comunico por leitura labial e uso aparelho auditivo.
A tecnologia também ajuda? Minha melhor amiga hoje é a Luzia, inteligência artificial de transcrição de áudio. É um contato de WhatsApp, em que você encaminha os áudios e ele transcreve.
Foi libertador tirar o assunto da sombra? Foi um alívio gigantesco poder dizer quem eu era. Tirei um peso das costas e minha vida mudou completamente. Desde que comecei a falar sobre a minha surdez, sobre como as pessoas poderiam se comportar para facilitar as coisas para mim, melhorou muito. Ninguém precisa falar alto ou fazer mímica — isso acaba constrangendo. As pessoas ainda não sabem lidar com a diferença. Poder ajudar nisso e combater o capacitismo é passinho de formiga. Devagar e sempre.