A acessibilidade no Rock in Rio sob o ponto de vista de um recém-cadeirante
Usando cadeira de rodas há dois meses, o jornalista Julio 'EleMesmo' Trindade fez sua primeira incursão em um festival e fala sobre boas supresas e desafios
Como seria voltar ao Rock in Rio depois de tudo que eu passei?
Essa pergunta foi o ponto de partida para garantir não só o meu bem-estar físico, mas também mental, já que provavelmente eu lidaria com muitas das frustrações que pessoas com deficiência enfrentam diariamente por conta da falta de acessibilidade na sociedade. E, para minha sorte, eu estava enganado.
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Estou cadeirante há dois meses. Tive uma infecção hospitalar pós-cirurgia e, após duas paradas cardíacas, sofri amputação transtibial na perna esquerda, além de amputação nos dedos do pé direito e em parte da mão direita. Durante esse curto período como PCD, percebi que acessibilidade é rara, quase inexistente. Para mim, garantia de acesso não é ter rampas, mas sim estar em qualquer local — seja ele qual for — sem precisar pedir ajuda, licença ou favores a ninguém. Era isso que eu, negativamente, imaginava que fosse ser constante no Rock in Rio.
Primeiro de tudo, foi escolher o dia. Optei pelo Dia Brasil porque, além de ter artistas que amo no lineup, acreditei que seria o dia “menos cheio”, o que facilitaria meu deslocamento pelo evento. Convidei um primo para me acompanhar nessa jornada — e também para me dar o suporte necessário.
A segunda parte era como chegar à Cidade do Rock. Escolhi ir com o ônibus Primeira Classe, já que era prometida acessibilidade para cadeirantes. E realmente era! Os ônibus eram equipados com cadeiras de transbordo, uma espécie de elevador que me colocava dentro do ônibus com tremenda facilidade. Me emocionei ao entrar no veículo, tamanha foi a tranquilidade.
Chegamos à Cidade do Rock e encontrei a primeira barreira: o piso de desembarque com pedregulhos. As rodas da cadeira travavam, então aceitei a ajuda de funcionários do local para entrar no evento. Esse foi o único momento em que alguém precisou empurrar minha cadeira. Da porta para dentro, foi tudo uma maravilha.
Fui encaminhado para uma van adaptada que me levou diretamente ao estande de acessibilidade do festival, oferecido pela Cavenaghi, empresa de veículos automatizados, e pela Ottobock, que fabrica próteses e órteses e trabalha com a reabilitação de amputados. No estande, peguei uma cadeira elétrica, que me ajudou a economizar forças nos braços para curtir os shows com maior conforto.
Percorri praticamente toda a Cidade do Rock. Em nenhum momento o piso do festival era inadequado para cadeirantes. Até a grama molhada era estável o suficiente para as rodas da minha cadeira. Foi uma das grandes surpresas para mim. Eu podia acessar TUDO, mesmo estando em uma cadeira de rodas.
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Nesta edição, cada área de banheiros contava com dois espaços para cadeirantes. Infelizmente, a limpeza dessas áreas não era das melhores, o que fez com que papéis higiênicos se prendessem nas rodas. Um desconforto para remover, mas nada que me chateasse.
Para a alimentação, algumas filas para PCDs não eram respeitadas, mas nada que um “esse é meu lugar” não resolvesse. Pode não ser um espaço exclusivo, mas a preferência na fila é nossa.
Aproveitei a área exclusiva para PCDs em frente ao palco Sunset. Um verdadeiro camarote. Pude ver Zeca Pagodinho melhor do que em outros shows do sambista. Me senti VIP! Infelizmente, preciso registrar mais um ponto negativo: o espaço, apesar de amplo, não comportava a quantidade de PCDs presentes no evento. Contei ao menos 20 pessoas barradas na entrada do espaço, que atingiu a lotação máxima. Optei por sair antes do fim do show de samba para ceder um pouco da vista maravilhosa a outro cadeirante. Nós por nós, de um jeito ou de outro.
Na hora de ir embora, tive ajuda novamente de uma van adaptada que me levou até a saída do evento. Enfrentei novamente o terreno irregular da entrada, mas logo fui para o ônibus relaxar depois de um dia agitado e extremamente satisfatório. Após a experiência de quase morte, me sentir vivo — mesmo em uma cadeira de rodas — foi um imenso prazer.
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