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Solidariedade, arte e cultura para sobreviver ao vírus e ao descaso

Coordenadores de ações solidárias em favelas contam como enfrentam a pandemia e as lacunas do poder público

Por *Marina Kersting
18 dez 2020, 11h59
Três mulheres de máscara ensinam a fazer sabão líquido na favela
Oficina de sabão líquido (Leandro Lima/Divulgação)
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“Como pessoas sem acesso a água conseguem lavar as mãos”?, questiona Luna Arouca, uma das representantes da Redes da Maré e coordenadora geral do Conexão Saúde. A organização, nascida por meio da união de moradores para ajudar os jovens das favelas a entrar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cresceu, desdobrou-se noutras frentes, até se tornar a Redes da Maré de hoje. Mas a essência continua a mesma. A ideia é “que todas as ações também produzam dados sobre as condições da população, para subsidiar o poder público a aplicar politicas melhores e mais efetivas para essa população”, ressalta Luna. Ela enfatiza a importância de organizações assim para mostrar e explorar o “potencial das periferias” e desenvolver soluções comunitárias especialmente em momentos como os vividos na pandemia – quando novas privações se somam a carências crônicas (água, saneamento, comida) e aumentam os desafios do dia a dia.

Para mitigar os impactos da crise sanitária nos 140 mil moradores da favela, a organização do Terceiro Setor criou as campanhas Maré diz não ao Coronavirus e Conexão Saúde. Convergiam no combate ao principal fantasma que assombrava, e assombra, esta e outras tantas comunidade no Rio e Brasil afora: a insegurança alimentar. Pelo menos 17 milhões de brasileiros já sofriam com alguma restrição de alimentos antes da pandemia. A crise acentua o problema:

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“A segurança alimentar foi, e ainda é, um desafio gigantesco, até pelo número de desempregados, que aumentou com a pandemia”, observa Luna. Ela completa: “Outro desafio é a própria disseminação do vírus na Maré. A estrutura das residências, muito próximas umas das outras, muitas vezes sem ventilação e com pouco cômodos, dificulta o isolamento e a contenção da pandemia”.

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Aos esforços públicos e privados para conter o avaço do coronavírus, somou-se o Conexão Saúde. A iniciatva envolve a testagem, o monitoramento dos casos de Covid e a ajuda a problemas médicos sem atendimento. Buscava melhorar, reitera Luna, tanto o acesso aos serviços de saúde quanto condições que permitissem o isolamento e a prevenção do contágio:

“Com o sucateamneto das unidades de Saúde que atendem às comunidades da Maré e a ausência de politicas públicas para moradores de favelas e periferias, o nosso desafio ficou ainda maior. Foi feito um levantamento junto a mais de 1.500 moradores com sintomas, incluindo as dificuldades encontradas: se as unidades de saúde estavam atendendo, se tinham que peregrinar pelos hospitais, se recebiam medicação. Mais de 70% não tinham acesso ao teste de Covid”, relata a coordenadora do Conexão Saúde. “Além disso, temos uma equipe de campo e o programa de isolamento domiciliar que oferta insumos para facilitar a permanência das pessoas em casa, como kit de higiene, proteção, alimentação e limpeza”, acrescenta.

O espírito solidário também moveu a técnica e acadêmica de enfermagem Joana Almeida a acudir privações impostas pela pandemia no vácuo do poder público. Ao presenciar amigos e conhecidos perderem empregos e renda na crise, lançou o Projeto de Educação Social de Pensamento Consciente (PESPC). Dedicado especialmente a moradores da favela Santa Marta, em Botafogo, recicla óleo de cozinha para fazer sabão líquido e em pasta. Dois litros de óleo rendem 60 litros de sabão, produto tão necessário nos dias atuais. Custa menos de um real por litro.

Cartaz com informações para os moradores da favela da Maré
Campanha Conexões Saúde (Rede da Maré/Divulgação)

“O projeto é uma esperança para quem não tem de onde tirar o sustento, além de incentivar o pensamento consciente’’, destaca Joana.

Profissional da saúde, Joana conta que escolheu a profissão “para salvar vidas”, depois de, aos 8 anos de idade, ter visto o pai morrer, vítima de bala perdida, “por não receber o socorro adequado”. Ela avalia:

“Falta muita coisa para um atendimento digno à população. Com a pandemia, a única coisa que mudou foi o aumento da jornada de trabalho e as responsabilidades. Demissões, falta de pagamento, sobrecargas de trabalho fazem parte da nossa rotina”, desabafa a técnica de enfermagem.

Enquanto sonha com melhores condições de trabalho, Joana aposta no crescimento de “projetos sociais sérios”. Não só como um mecanismo de resistência a adversidades comio as exacerbadas pela pandemia, mas para valorizar talentos e construir oportunidades sociais e econômicas:

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“Somos um povo resistente. Os projetos sociais sérios são importantes para dar à população das favelas oportunidade e dignidade, tentando substituir o abandono do poder público.

Para o paulistano Fábio Miranda, esse caminho é construído com arte, ecologia e muita criatividade. Morador do Jardim Angela, na periferia da Zona Sul de São Paulo, e cofundador do Favela da Paz, ele criou um programa para extrair energia elétrica a partir do limão:

“Por ser uma fruta cítrica, tem um potencial de conduzir prótons e elétrons ao serem ligados por materiais como o zinco e o cobre. Com a reação química, temos a capacidade de produzir energia elétrica, conseguindo colocar até um relógio digital para funcionar”, explica.

Energia é o que não falta nesta e em outras ações integrantes do Periferia Sustentável e da Favela da Paz. Reúnem, por exemplo, aulas gratuitas de música e de percussão e morada. Fábio promove o acesso à cultura como um vetor de transformação social:

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“As ONGs têm um papel muito importante. Não só agora nesse momento de pandemia, mas há muito tempo. Se pegar o histórico do lugar onde a gente vive, o Jardim Angela, durante um bom tempo foi considerado um dos mais violentos. O que trouxe um novo cenário para esse lugar foi um engajamento das organizações, com possibilidades para que essas pessoas pudessem ter um espaço de troca, de conhecimento. Um espaço de liberdade, de cultura, de arte, para mudar a realidade. O Projeto Periferia Sustentável e outras iniciativas do tipo constroem essas possibilidades”.

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Dessas possibilidades, faz parte a propagação do estilo de vida sustentável nas diversas camadas sociais – até para fortalecer a resistência e a resiliência necessárias à superação desta crise histórica, e de outras que virão. Na opinião de Fabio, é preciso, antes de mais nada, uma plena compreensão da sustentabilidade:

“Muitas pessoas acham que sustentabilidade é uma coisa viável e acessível para todo mundo, que só está na classe média alta. Mas não, todo mundo tem capacidade para ser sustentável. Sustentável hoje já não é mais só uma palavra bonita. É um estilo de vida. Tudo está ligado com a sustentabilidade. Esta é a grande chave. O investimento nas artes, na cultura, faz parte disso. Traz  um transformação muito boa para a humanidade, principalmente no cenário atual. E a ecologia é outro grande pilar. Precisamos cuidar do nosso planeta”.

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Homem carrega alimentos como arroz, óleo e feijão
Distribuição de cestas na Maré (Kamilla Camillo/Divulgação)

Não somente a ecologia, mas tantas outras pautas colocadas pelas periferias e favelas vêm sendo cada vez mais conhecidas pela população. Essas ações são frutos de uma luta constante de seus moradores frente a um Estado marcado pelo desinteresse e abandono desses territórios. Ao fim da entrevista com a Redes da Maré, em referência a um de seus projetos, perguntei à Luna qual era a Maré que eles queriam. Nesse momento, as vozes que ecoam da periferia até os centros urbanos se combinam em uníssono.

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*Por Marina Kersting, aluna de Comunicação Social – Jornalismo, na PUC-RJ

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