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No coração da África: bastidores do filme “Gabriel e a Montanha”

Equipe carioca mergulha no misticismo, na pobreza e na beleza da África para contar a história de um jovem que morre ao desafiar os próprios limites

Por Renata Magalhães
Atualizado em 30 out 2017, 13h43 - Publicado em 27 out 2017, 12h04

Os ânimos não eram os melhores em 23 de junho do ano passado, quando o cineasta Fellipe Barbosa decidiu dar uma volta para espairecer no centro de Zanzibar, cidade na ilha de mesmo nome na costa da Tanzânia, no leste da África. Depois de dois meses de filmagens no continente, a atriz principal de seu filme foi parar no hospital com suspeita de cólera e um desentendimento provocou mal-estar na equipe. O diretor também tinha sido obrigado a desistir de um pedaço importante de sua história original. Ele havia procurado na cidade, sem sucesso, uma pessoa que travou contato com o personagem que inspirou seu longa, o economista carioca Gabriel Buchmann, morto aos 28 anos em uma montanha no Malaui, sete anos antes. Absorto em pensamentos, o cineasta foi surpreendido por um homem que o abordou pedindo dinheiro. Queria ajuda para comprar medicamentos contra malária. O brasileiro achou a história familiar e continuou a conversa. Depois de alguns minutos não havia mais dúvida: o pedinte era Toney Montana, o nigeriano que em 2009 havia ciceroneado Gabriel e sua namorada, Cristina Reis, no local. “Já nem esperava encontrá-lo mais”, recorda Barbosa. “Uma das regras que estabeleci era que, se não achasse as pessoas que me ajudassem a contar detalhes de algum trecho da viagem de Gabriel, deveria deixar de lado essa parte, pois era um desígnio do destino”, diz Barbosa, revelando um insuspeito lado místico.

Com a súbita descoberta, Montana voltou à narrativa e se tornou parte importante do filme, justamente em um ponto em que começa a se cristalizar uma inflexão na personalidade do herói. Nos bastidores, o episódio de Zanzibar somou-se à peculiar realização de Gabriel e a Montanha, coprodução franco-brasileira que levou o prêmio revelação na Semana da Crítica no Festival Internacional de Cinema de Cannes em maio e estreia na quinta (2) nos cinemas nacionais. A produção passou por quatro países – Quênia, Tanzânia, Zâmbia e Malaui – para (re)construir a história. Com o ator João Pedro Zappa no papel principal, o longa aposta em uma linguagem que incorpora elementos do documentário para revisitar uma história real: os espectadores acompanham os últimos setenta dias de vida do carioca que ambicionava estudar a pobreza e morreu de hipotermia ao se perder na descida do Monte Mulanje, de 3 000 metros de altitude, duas semanas antes de voltar ao Rio.

Para contar esse episódio pungente, uma equipe de dezoito pessoas percorreu 6 000 quilômetros durante onze semanas, entre maio e julho de 2016. A aventura incluiu ainda escaladas do mítico Kilimanjaro (5 895 metros de altitude). Cinquenta carregadores auxiliaram no transporte dos equipamentos, que registraram setenta horas de gravação. As jornadas de trabalho chegavam a durar doze horas. Essa coleção de números grandiosos mesclou-se a doses de emoção de quem sabia detalhes da história de vida — e da morte — de Gabriel. O cineasta e o economista se conheceram no Colégio São Bento aos 7 anos e se reencontraram na PUC-Rio, onde ambos começaram a cursar economia. Aos 19 anos, o futuro cineasta foi para Nova York, enquanto Gabriel desenvolveu um projeto de pesquisa na Fundação Getulio Vargas (FGV) e ganhou uma bolsa de doutorado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). Mas antes quis viajar pelo mundo, para ver de perto a pobreza. Em seu projeto inusitado, quando era hospedado por famílias pobres, doava aos anfitriões o dinheiro reservado a seus gastos diários. Assim, Gabriel percorreu a Ásia e tinha na África a etapa final de seu périplo. A notícia de seu desaparecimento chocou os amigos, mas ainda havia esperança. Barbosa, à época, teve a ideia de fazer um filme estrelado pelo próprio Gabriel. “Seria incrível contarmos juntos como ele tinha sobrevivido.” A confirmação da morte, dezenove dias depois, veio acompanhada por suspeitas, rapidamente descartadas, de um crime. “Foi quando decidi não apenas homenagear o meu amigo, mas fazer uma representação mais justa de um lugar que é, ao mesmo tempo, tão próximo e tão distante.”

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Apesar dos ares de superprodução, o filme de Barbosa seguiu um modelo quase artesanal. “Cada um tinha uma função muito bem definida, mas enfrentamos tantas dificuldades que todo mundo se ajudava”, lembra a mulher do diretor, Clara Linhart, assistente de direção e coprodutora de Gabriel e a Montanha. Ainda antes disso, o tom literalmente familiar da obra foi dado pela participação efetiva de parentes e amigos do personagem principal no processo. A mãe e a irmã, Fátima e Nina Buchmann, cederam toda a correspondência entre elas e o jovem ocorrida durante a viagem dele, além de seu caderno de anotações. A namorada, Cristina Reis (vivida no filme pela atriz Caroline Abras), compartilhou registros fotográficos e relatos dos trechos do percurso em que esteve presente, fundamentais para a busca dos personagens africanos. A experiência pessoal de Fellipe Barbosa, que já havia trabalhado como voluntário em um programa do Maisha Film Lab, criado pela cineasta indiana Mira Nair, também ecoou durante o desenvolvimento do filme. “Sentia que ter passado por uma vivência parecida me dava legitimidade para contar a história, como se o destino tivesse armado aquilo anos antes”, diz o diretor.

Para quem gosta de tramas pitorescas temperadas com emoção, as filmagens de Gabriel e a Montanha oferecem uma farta seleção. A aventura já começou complicada. Ainda no Rio, Barbosa foi acometido de uma pneumonia e teve de atrasar seu embarque. Na maratona de voos que os levaria até Uganda, ponto de partida da epopeia, a equipe perdeu o avião ainda em casa, no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Logo na primeira viagem por terra, o caminhão que transportava os profissionais e equipamentos atolou de forma desesperadora na lama e levou horas até que fosse retirado da estrada transformada em charco. No Quênia, os brasileiros se surpreenderam ao ver o quintal da casa onde se hospedaram amanhecer ocupado por um mercado armado por membros da tribo masai. Na Zâmbia, a equipe de arte quase apanhou na rua ao tentar trocar cartazes de candidatos às eleições de 2016 por versões com políticos que concorreram no pleito de 2009 (as cenas foram cortadas na versão final). Não menos complicada foi a convivência com Lewis Mauzu, o guia dispensado por Gabriel pouco antes de sua morte. O momento mais impactante, no entanto, aconteceu na etapa final. Ao realizar as tomadas no local onde o economista morreu, em um pequeno abrigo natural na encosta do Monte Mulanje, a equipe achou uma das luvas que ele usava. Em outro episódio tocante, a turma de brasileiros, incluindo a irmã, Nina Buchmann, dispersou as cinzas de Gabriel no topo e onde o corpo foi encontrado. Segundo lendas de moradores da região, a montanha escolhe para si pessoas iluminadas, e elas devem ficar lá para sempre.

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Fatima e Nina Buchman
Fátima e Nina Buchman: ajuda essencial para o roteiro do filme (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Chama atenção em Gabriel e a Montanha, filme de estrutura pouco convencional, a participação do numeroso elenco local. Logo nas primeiras cenas fica claro que não se trata de atores, mas de pessoas que conviveram com o brasileiro durante sua passagem pela África. Muitos souberam da morte de Gabriel pela equipe de gravação e se emocionaram. De maneira geral, os colaboradores amadores foram instruídos pelo diretor a repetir, da forma mais natural possível, situações vividas durante a visita do economista em 2009. Coube a João Pedro Zappa auxiliá-los durante as filmagens. “Minha preocupação era encontrar um ponto de interpretação que fosse tão puro quanto o daquelas pessoas que estavam atuando pela primeira vez”, explica o ator, elogiado por Barbosa. Para dar conta dos muitos aspectos de sua árdua missão, Zappa passou por dois meses de preparação física intensa no Rio, com o capoeirista Jorge Itapuã Beiramar. Ele elege a subida do Monte Kilimanjaro como o maior desafio de sua carreira: “Em determinado ponto, achei que não iria conseguir”.

Orçado inicialmente em 2,4 milhões de reais, Gabriel e a Montanha teve ainda um aporte de 360 000 euros (cerca de 1,4 milhão de reais). A boa repercussão do primeiro longa de Fellipe Barbosa, Casa Grande (2014), na França atraiu o interesse de investidores como a produtora Arté e o Centre National du Cinéma (CNC). A pós-produção foi feita naquele país e a estreia mundial também, no Festival de Cannes, no dia 21 de maio. Além do filme, um livro, Gabriel, as Montanhas e o Mundo (Editora Autografia, 260 págs., 59 reais), tem lançamento previsto para o dia 6, na Livraria Argumento do Leblon. A obra, de Fátima Buchmann e da jornalista Alícia Uchôa, reúne fotos, e-mails e textos produzidos pelo jovem durante toda a sua viagem — e não apenas no trecho africano. “Ao longo desses anos, tirei minha força da certeza de que era importante perpetuar a mensagem que meu filho queria passar, e estou muito feliz com a forma como ele foi retratado”, diz Fátima. Com Gabriel e a Montanha, o menino idealista crescido no Grajaú que queria ajudar os pobres do mundo ganhou um filme à altura dos seus sonhos. ß

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(Veja Rio/Veja Rio)
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