Cecília Olliveira: “Milícias não são poder paralelo, são o próprio Estado”
Jornalista lança o livro Como Nasce Um Miliciano, em que esmiúça esse poder ilegal; em conversa com VEJA RIO, ela fala sobre desafios e aponta soluções

Referência no jornalismo investigativo nacional, Cecília Olliveira faz uma radiografia das milícias no Brasil em seu primeiro livro, Como Nasce um Miliciano (ed. Bazar do Tempo), que tem eventos de lançamento no Rio neste sábado (14), na às 13h, Livraria Folha Seca, no Centro, e nesta quinta (19), às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo.
Especializada em segurança pública e criadora do Instituto Fogo Cruzado, a jornalista parte da morte de Carlos Eduardo Benevides Gomes, o Cabo Bené — PM que se tornou líder miliciano e foi morto em uma operação policial — para traçar uma análise estrutural desse fenômeno, com direito a infográficos que ajudam a traçar a genealogia das milícias.
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Dados recentes levantados pela autora saltam aos olhos: as áreas sob domínio das milícias no Rio cresceram 387% em um período de dezesseis anos e, atualmente, 10% de toda a extensão do Grande Rio está sob controle desse poder ilegal.
Neste sábado (14), às 13h, na na Livraria Folha Seca, Cecília autografa o livro em um evento com roda de samba do grupo Jequitibá. Já na quinta (19), às 19h, o lançamento do livro tem bate-papo com Paulo Roberto Mello Cunha e Luiz Eduardo Soares, com mediação de Mariana Araujo, na Livraria da Travessa.
A jornalista participa ainda da Bienal do Livro, na próxima sexta (20), na mesa Segurança Para Quem, no palco Café Literário Pólen, ao lado de Rafael Soares, Luiz Eduardo Soares e Jessé Andarilho.
Em entrevista a VEJA Rio, Cecília Olliveira fala sobre o surgimento desse poder ilegal, momentos marcantes da escalada das milícias no Rio, o modelo de franquia adotado por elas e os principais desafios para fazer o livro, além de apontar formas de combater o avanço desses grupos.
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O livro traça a genealogia das milícias. Quando e como pode-se dizer que elas surgiram no Rio de Janeiro? As milícias — como conhecemos hoje — não surgem do dia para noite, nem são, necessariamente, novidade. O que a gente chama hoje de milícia tem raízes em grupos de extermínio que atuavam desde a ditadura militar, compostos por policiais e ex-policiais que faziam “limpeza social”. Na década de 1990, esses grupos passaram a se organizar em comunidades, principalmente na Zona Oeste do Rio, se apresentando como “autodefesa” contra o tráfico. Eles cobravam por segurança, por transporte, por serviços básicos. O discurso era o de proteção — mas, na prática, era um projeto de poder territorial, armado, econômico — e político. Então, a gente pode dizer que a milícia nasce quando esses grupos param de agir como “justiceiros” e começam a dominar bairros como empresários do crime, com apoio institucional e político.
Que outros momentos e personagens são mais marcantes — digamos que momentos-chave — na trajetória desse poder paralelo no Rio? Sem dúvida, um dos momentos mais importantes é quando esses grupos deixam de ser estruturas soltas e passam a atuar como uma rede. Isso começa a acontecer com a formação da Liga da Justiça, uma espécie de consórcio de milicianos na Zona Oeste. Depois, vem a ascensão da família Braga, com Carlinhos Três Pontes, e mais tarde o irmão dele, o Ecko, que transforma a milícia num verdadeiro conglomerado criminal — o Bonde do Ecko — que passou a atuar em um sistema de franquias, absorvendo, compulsoriamente, milícias independentes e menores, agregando e a sua estrutura. O Bonde fornecia armas, homens, estratégias em troca, tinham “participação nos lucros”. Outro marco é a CPI das Milícias em 2008, que jogou luz sobre o envolvimento direto de políticos, inclusive parlamentares, com essas organizações — mas que foi solenemente ignorada na construção de planos e projetos de segurança nos anos seguintes, permitindo que as milícias crescessem 400% na última década e meia. Mais recentemente, a atuação do grupo de Ecko em Itaguaí, com o uso de armas institucionais, e o fortalecimento das alianças com o tráfico, marcam a consolidação desse poder — que não é paralelo. São agentes públicos, treinados e pagos pelo Estado. É o próprio Estado.
Como funciona o modelo de franquia usado pelas milícias para ampliar seus domínios? O modelo é muito parecido com o de uma franquia comercial como a que a gente já conhece. Uma milícia central — o Bonde do Ecko — oferece apoio logístico, armamento, segurança, contatos políticos, e até consultoria sobre como cobrar taxas e dominar serviços. Em troca, os grupos locais precisam dividir os lucros com a matriz. E quem não aceita ou é absorvido à força, ou é eliminado. É um modelo de expansão agressiva, baseado na ideia de que o controle do território vale mais do que o confronto direto com o Estado ou outros grupos. Eles escolhem áreas com pouca resistência, com ausência do Estado, e se instalam como a nova ordem. Controlam desde o transporte até o mercado imobiliário. É uma lógica empresarial, com planejamento, metas, e que conta com a impunidade garantida por dentro das instituições.
Quais as principais dificuldades em realizar um trabalho como o seu nesse livro? A maior dificuldade é, sem dúvida, a segurança. Falar de milícia é muito mais perigoso do que falar de tráfico, porque você está mexendo com gente que está dentro das instituições — gente armada, com informação privilegiada e, muitas vezes, com poder político. Há também a dificuldade de acesso a fontes, porque o medo é real. Muitos moradores, parentes de vítimas, até policiais têm receio de falar. Outra dificuldade é o silêncio institucional. Tem muito dado que simplesmente não existe ou está escondido. A Polícia Civil do Rio, por exemplo, não apenas negou todos os pedidos de entrevistas e de informação que fiz, como colocou dados que solicitei — sobre as munições da instituição que foram achadas com os milicianos — em sigilo pelos próximos cinco anos. As investigações são arquivadas, não têm transparência. E, por fim, tem o desgaste emocional. Lidar com histórias de execução, de tortura, de famílias inteiras vivendo sob terror — isso te afeta. Mas a apuração é necessária, porque, se a gente não contar essa história, ela vai continuar sendo contada pelos próprios milicianos.
Atualmente, 10% de toda a extensão do Grande Rio está sob controle das milícias. A seu ver, de que forma podem ser combatidas? E qual o maior desafio para combatê-las? É importante frisar: milícias não são um poder paralelo. São o próprio Estado. São funcionários públicos, que estão na lista de pagamento do Estado, mas que agem — também — no crime e que usam de toda a estrutura do Estado, de serviços de secretarias a eleição para benefício próprio. E, exatamente por isso, o combate precisa começar por onde tudo começa: nas instituições. Não adianta só operação policial. Precisa cortar o dinheiro, quebrar a base política e enfrentar a conivência institucional. Isso significa rever o controle de armamentos, fiscalizar os contratos públicos onde milicianos atuam, investigar a fundo os vínculos com políticos e agentes de segurança. Também passa por inteligência financeira: seguir o rastro do dinheiro. Mas um dos maiores desafios, para mim, é a naturalização. A milícia se vende como ordem, como solução, como proteção. E muita gente compra esse discurso. Enquanto ela continuar sendo vista como “o menor dos males”, o enfrentamento vai ser superficial. É preciso encarar a milícia como o que ela é: um projeto de poder, enraizado no Estado, que precisa ser desmontado com política pública, transparência e coragem institucional.
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