Caixa Cultural recebe maior exposição de Picasso já montada na cidade
Mostra reúne 27 pinturas, 42 desenhos, vinte gravuras e vinte esculturas, entre as quais doze cerâmicas, guardadas a vida inteira pelo gênio espanhol
Quando ainda era aluno na Escola de Belas Artes de La Coruña, onde o pai dava aulas, o garoto pintou L’Homme à la Casquette (O Homem de Boné). Clássico, nos moldes do que se ensinava na academia, o óleo sobre tela de 1895 presta evidente tributo à escola de Velázques e Goya. Aí vem o assombro: em seus primeiros passos, o rapazola de 14 anos já não devia muito à obra dos grandes nomes da arte espanhola. Pablo Picasso (1881-1973) logo conquistou lugar de destaque no panteão reservado a seus mestres, mas não se acomodou. Inquieto, aventurou-se por novas fases, abriu caminhos nunca antes explorados, como o do cubismo, experimentou técnicas, protagonizou movimentada crônica amorosa e nunca fugiu do combate político. Chegou ao fim da vida, aos 91 anos, como celebridade internacional e estrela de primeira grandeza da arte no século XX, sem jamais se desfazer de O Homem de Boné. O retrato assinado pelo menino virtuoso é uma das muitas preciosidades de Picasso: Mão Erudita, Olho Selvagem, a maior exposição dedicada ao gênio espanhol já montada na cidade.
Com 138 peças trazidas do Museu Nacional Picasso, em Paris, a mostra iniciou sua temporada brasileira pelo Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, parceiro da entidade francesa na importação desse tesouro. Por lá, entre maio e agosto, atraiu 390 000 pessoas. A vez do Rio começa na terça (13), na Caixa Cultural, e vai até 20 de novembro. O público encontrará 109 criações do artista — 27 pinturas, 42 desenhos, vinte gravuras e vinte esculturas, entre as quais doze cerâmicas —, praticamente todas inéditas por aqui. O que também torna a exposição tão especial é a maneira como esse conjunto se formou. A coleção do museu parisiense nasceu de doações feitas ao Estado pelos descendentes de Picasso, a partir de 1973, em um acordo para o abatimento de impostos sobre herança. “São obras que foram guardadas por ele, possivelmente com o intuito de criar um museu próprio”, conta a curadora Emilia Philippot. A esse acervo bem pessoal se convencionou chamar de “Picassos de Picasso”.
E ela aposta alto na seleção: “A escolha de cada trabalho foi pensada para que o visitante consiga entender seu processo de criação nos mais variados períodos. Quero mostrar um artista completo, não apenas o pintor, mesmo que nessa atividade ele fosse o melhor”. Completam o panorama três filmes, a exemplo de Le Mystère Picasso (1956), de Henri-Georges Clouzot, além de 22 fotos feitas por André Villers, parceiro de Picasso em experiências com a câmera, outras três de Pierre Manciet e doze de Dora Maar — a musa, a quarta de suas sete mulheres, eternizou em retratos a produção do famoso painel Guernica. Duas galerias guardam as atrações principais, originais dispostos em ordem cronológica e divididos em dez seções temáticas. Estão presentes suas influências, a exemplo da arte primitiva, a melancólica fase azul, a evolução da geometrização das formas rumo à criação do cubismo, marco transformador da arte moderna, os tempos de engajamento e o canto do cisne: uma explosão final de criatividade que vai da sensualidade aberta da tela O Beijo ao delicado, infantil quadro O Jovem Pintor, produzido um ano antes de sua morte.
Diretor do Instituto Tomie Ohtake e, portanto, bastante familiarizado com o conteúdo da exposição, Ricardo Ohtake dribla o convite para indicar seus pontos altos. “Picasso sempre viveu o modernismo em sua vanguarda. Nenhum artista criou com tanta qualidade e inventividade durante oitenta anos”, justifica-se. Não se sabe o número preciso, mas é consenso entre estudiosos que o artista tenha produzido mais de 20 000 obras. Para quem for à Caixa, Ohtake oferece algumas pistas. Ele conta que, em São Paulo, as telas Le Repas Frugal (1904), com um casal à mesa de jantar, e Homem com Violão (1911), uma das dezoito escolhidas tendo o violão como protagonista, estavam entre as que atraíram por mais tempo o olhar do público. A francesa Emilia Philippot também é fã de Homem com Violão. “Apontar favoritos é difícil, mas realmente amo essa tela, pela riqueza de sua estrutura, pelo tempo que a pintura leva para se tornar legível, a nuance delicada de suas cores, os pequenos detalhes escondidos, esperando para ser descobertos”, derrama-se. Ela também recomenda atenção às fotos feitas em colaboração com André Villers. “Elas têm frescor, uma grande variedade de texturas e contrastes e, além disso, são bem pouco conhecidas”, ensina.
O que é que Picasso tem? Nascido no século XIX, chega ao terceiro milênio com status de ícone pop e o (alto) prestígio intacto na história da arte. Em maio do ano passado, uma tela sua de 1955, As Mulheres de Argel (que não está na exposição), foi arrematada, na casa Christie’s de Nova York, por 179 milhões de dólares. Trata-se do maior valor já desembolsado em leilão por uma obra de arte. Na lista das dez pinturas desaparecidas mais valiosas do planeta — organizada pelo banco de dados Art Loss Register, dedicado a trabalhos roubados e perdidos —, lá estão dois picassos: Le Pigeon aux Petit Pois (1911), surrupiado do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, e Cabeça de Arlequim (1971), afanado do Museu Kunsthal, em Roterdã, na Holanda. “Sem dúvida, a riqueza da interpretação de suas obras, o que também constitui parte de seu mistério, mantém o interesse por ele e o sucesso das exposições pelo mundo”, observa Laurent Le Bon, presidente do Museu Nacional Picasso, de Paris.
Teorias acadêmicas ajudam a explicar o fenômeno, mas um toque de sedução também entra na receita. “Há algo de irracional, ninguém fica indiferente ao seu trabalho. Quando você considera a vida romanesca que ele levou por quase um século, sua produção extensa e a eterna capacidade de se reinventar, só pode acabar fascinado”, conta a curadora Emilia. Gozador, festeiro e mulherengo, Picasso, por outro lado, não escondia uma séria preocupação com a posteridade. Detalhista, datava tudo o que fazia e usava algarismos romanos para organizar, por ordem de produção, desenhos e gravuras que terminava num mesmo dia. No livro Conversas com Picasso, o fotógrafo húngaro Brassaï lembra que, ao compor uma cena para clicar o artista, mexeu nos seus chinelos. “Vai ser uma foto divertida, mas não será um documento. E sabe por quê? É que você mudou meus chinelos de lugar”, comentou o exigente modelo.
Esse personagem de características tão distintas resplandece em Mão Erudita, Olho Selvagem. “É uma coleção bastante generosa e representativa. Teve curadoria competente. Definitivamente, é a melhor exposição sobre Picasso já realizada na cidade”, afirma o editor e galerista Max Perlingeiro, diretor da Pinakotheke Cultural do Rio de Janeiro, um dos visitantes na temporada paulista. Dos 109 trabalhos com a assinatura do mestre que serão apresentados na Caixa Cultural, apenas a gravura La Femme qui Pleure (1937) já conhecia o Rio. Estava entre as 150 criações exibidas em Os Anos da Guerra (1937-1945), grande exposição carioca dedicada a Picasso, montada no Museu de Arte Moderna em 1999. Curador-geral do MAM na época, o professor e crítico de arte Agnaldo Farias compara os dois acervos. “A primeira exposição era mais concentrada, enquanto esta tem atrações inacreditáveis, mostra a amplitude e a versatilidade do artista desde sua juventude. Mesmo quem acha que conhece bem Picasso vai se surpreender com tantas obras maravilhosas”, diz.
Le Bon, o comandante do museu parisiense, lembra-se de outros dois grandes momentos de Picasso no Brasil, ambos em território paulista. No texto para o catálogo da exposição atual, menciona a estreia nacional, uma retrospectiva montada durante a II Bienal de São Paulo, em 1953, na qual brilhou Guernica — o painel inspirado pelas atrocidades da Guerra Civil Espanhola hoje é proibido de deixar o Museu Reina Sofia, na Espanha. Em entrevista a VEJA RIO, também elogiou a alentada mostra levada à Oca, no Parque do Ibirapuera, em 2004, mas ressalta: “Não chega a uma dezena o número de trabalhos daquela ocasião repetidos na atual exposição”. A chance é única, como se vê, e mitiga, de certa forma, uma dívida antiga e imperdoável da cidade com Pablo Picasso. O trágico incêndio que consumiu o Museu de Arte Moderna do Rio, em 1978, dizimou dezenas de obras do uruguaio Torres‑Garcia, mas também transformou em cinzas dois quadros do gênio espanhol: Cabeça Cubista (1909) e Retrato de Dora Maar (1941). Isola!