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Ameaça que vem à tona

Símbolos da cidade, a ponto de estamparem nossa bandeira, os golfinhos correm o risco de sumir da Baía de Guanabara

Por Ernesto Neves
Atualizado em 2 jun 2017, 13h13 - Publicado em 5 fev 2014, 15h46
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meio-ambiente-04.jpg (Redação Veja rio/)
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MAQUA/UERJ
MAQUA/UERJ ()
Reprodução
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Com sua combinação hipnótica de tons esverdeados e anil, a Baía de Guanabara mesmerizou viajantes ao longo dos séculos. O jesuíta José de Anchieta, nos primórdios do Rio, adjetivou-a de “airosa e amena”, enquanto o pintor inglês Oswald Brierly, com seu olhar afiado para as cenas marinhas, se encantou com “golfinhos que perseguiam um cardume de peixes voadores” num trecho próximo ao Pão de Açúcar. Durante a construção do Passeio Público, em 1760, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa ordenou que o parque fosse dotado de um terraço. Antes que sucessivos aterros levassem o mar para longe da Lapa, o espaço elevado propiciava visão privilegiada para a coreografia dos cetáceos. Porém, após um histórico de degradação nas décadas recentes, ficou difícil encontrar alguém que ainda se encante com a exuberância daquele ecossistema. Talvez tão difícil quanto encontrar por lá golfinhos. Tido como um dos símbolos do Rio, sendo representado, inclusive, na bandeira da cidade, o boto-cinza agoniza na Baía de Guanabara. No último ano, a população dessa espécie foi reduzida de 45 para quarenta indivíduos. Ou seja: a mortandade atingiu insustentáveis 12%, quatro vezes mais do que o índice tolerável, fazendo soar o alerta entre ambientalistas e pesquisadores. “A taxa foi muito alta e acentuou o risco de extinção dessesanimais no local”, avalia Alexandre Azevedo, oceanógrafo do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Apesar de o discurso ambientalista sempre antever panoramas sombrios, às vezes com alarmismo exagerado, a diminuição da população de botos na Guanabara é um fato real (e preocupante). Facilmente avistáveis até os anos 70, eles formavam uma população estimada em 1?000 exemplares há apenas quarenta anos. O número desabou para 400 em 1980, e foi reduzido a menos de uma centena na década seguinte. Além da poluição, o crescimento do tráfego de embarcações é apontado como agravante do problema, pois o barulho do motor provoca intenso stress nos animais e eventuais acidentes. Na quarta-feira passada (29), por exemplo, foi registrada a presença de 140 embarcações de médio e grande porte na Baía de Guanabara, sendo três delas transatlânticos. Nesse sentido, o reaquecimento das atividades navais no Rio, impulsionadas pela exploração de petróleo no pré-sal, contribui para aumentar o problema. Em 2013, a dragagem realizada no Porto de Itaoca, em São Gonçalo, é apontada como provável causa para a mortandade repentina. Hoje, a região passa por obras para a construção de dutos do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). “Estamos mudando o padrão de uso da baía”, critica o iatista e ambientalista Axel Grael. “Deixamos de utilizar suas águas para transporte e pesca e começamos a empregar ali serviços de logística, o que vem causando sérios impactos.”

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Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

Encontrado na costa atlântica das Américas Central e do Sul, o boto-cinza é considerado um dos mamíferos mais inteligentes do planeta, com peculiaridades singulares (veja o quadro). Geralmente agrupados em comunidades com cerca de vinte indivíduos, esses botos costumam se fixar em um só lugar durante toda a existência. Ou seja: muito provavelmente os golfinhos cariocas de agora descendem de animais que encantaram os primeiros viajantes. Seu habitat são as baías e enseadas, especialmente nas proximidades de manguezais e estuários, onde encontram fartura de alimentos, principalmente crustáceos e peixes. Os golfinhos contam ainda com um complexo sistema de comunicação, realizada através de sons. Esses sinais emitidos funcionam como um radar, e o eco ajuda o boto a reconhecer o ambiente à sua volta, daí ele conseguir se locomover com destreza pela águas turvas da Baía de Guanabara.

Devido à capacidade para reconhecer e evitar ambientes degradados, os botos-cinza não à toa estão desaparecendo dali. Há pelo menos quatro décadas o quadro se tornou crítico. Em decorrência da destinação de efluentes químicos provenientes de fábricas e estaleiros, o ecossistema entrou em acelerado processo de deterioração na década de 70. Aliado à contaminação industrial, o crescente despejo de esgoto doméstico produzido por 10 milhões de habitantes criou uma situação de colapso ambiental na baía, que é cercada por oito municípios e onde deságuam 55 rios. Pressionado pela opinião pública, o governo estadual lançou, em 1992, um programa de despoluição. Financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pelo governo japonês, o plano criou a expectativa de ser a solução definitiva para o problema, ponto crítico de uma cidade que se via às vésperas de receber a conferência ambiental Rio-92. Entre as ações previstas estavam a construção de redes de saneamento básico e estações de tratamento, limpeza de rios e fiscalização das indústrias. Duas décadas depois, seu estuário continua a receber impressionantes 18?000 litros de esgoto sem tratamento por segundo. O descaso produziu um quadro igualmente grave nas Ilhas Cagarras. Até 2004, o arquipélago servia como abrigo a golfinhos da espécie flipper, mais afeita ao mar aberto. Porém, há três anos não se vê esse tipo de animal por ali. “Eles não frequentam águas sujas e sem comida. Certamente encontraram local melhor para se fixar”, acredita Liliane Lodi, bióloga do Instituto Mar Adentro.

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Os efeitos danosos da poluição podem ser observados a olho nu. Com o sistema imunológico debilitado pelo excesso de química, os botos da baía frequentemente apresentam ferimentos pelo corpo. Também é comum presenciar a agonia dos bichos enrolados a redes de pesca e pedaços de saco plástico. Composto de 34 pesquisadores, entre eles Rafael Carvalho e Criscia Mesquita, o grupo Maqua empreende uma força-tarefa para preservar os golfinhos. Desde 1992, quando tiveram início os estudos, os biólogos da Uerj fazem duas expedições semanais com o intuito de perscrutar os hábitos desses cetáceos. Numa pequena embarcação, seguem nas primeiras horas do dia até as margens no fundo da Guanabara. Seu destino é a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim, onde a espécie busca refúgio, por ser essa uma região ainda bem preservada. Por meio de uma técnica conhecida como fotoidentificação, eles registram com poderosas máquinas fotográficas as nadadeiras dos animais. Cada uma delas possui características únicas, funcionando, assim, como uma espécie de impressão digital. É possível distinguir cada bicho observando os detalhes de seu órgão locomotor. Daí o acompanhamento tão preciso ? e a preocupação com a morte de cinco animais em apenas dois meses no ano passado. “É uma reposição muito díficil. Cada fêmea é capaz de gerar apenas um filhote por vez. São doze meses de gestação e o período de amamentação demora três anos”, diz Haydée Cunha, uma das biólogas do projeto.

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Existem outras populações de golfinhos espalhadas pelo Rio ? todas enfrentando dificuldades. Localizada a 75 quilômetros do Centro, a Baía de Sepetiba é hoje o maior santuário de botos-cinza do país. Calcula-se que a região abrigue de 1?000 a 1?200 indivíduos da espécie, sendo que na vizinha Ilha Grande há outros 800 exemplares. Apesar do número expressivo, Sepetiba sofre do mesmo problema da Guanabara, com elevado número de mortes anuais. Para reverter a situação, a ONG Instituto Boto-Cinza promove ali campanhas de conscientização. Moradores do entorno envolvidos com a indústria pesqueira estão sendo treinados para trocar a atividade predatória pelo turismo ecológico. “Vamos capacitá-los para que levem turistas até as áreas onde se avistam os animais”, diz o biólogo Leonardo Flach. O serviço, que será feito a partir de Itacuruçá, deve ter início no começo de março, durante o Carnaval.

Exemplos bem-sucedidos de recuperação de ecossistemas servem de alento e renovam as esperanças de dias melhores para os golfinhos do Rio. Transformado em um valão no século XIX, o Rio Tâmisa, em Londres, foi considerado em 1957 biologicamente morto. Entre os anos 60 e 70, no entanto, o jogo começou a virar com a implantação de um complexo sistema de tratamento que eliminou por completo o despejo de esgoto. Hoje recuperado, o Tâmisa abriga em seu leito mais de 120 espécies de animais, entre elas o sensível salmão. Metrópoles afetadas pela sujeira, como Sydney, na Austrália, e Tóquio, no Japão, também limparam com sucesso suas baías. “Sonho em voltar a ver golfinhos por aqui, como quando comecei a velejar, há quarenta anos”, diz Axel Grael. “Na Guanabara existe uma espetacular renovação de água. É só parar de poluir que a natureza cuida do resto.” Tão cariocas quanto outros símbolos da cidade, os botos-cinza não podem ser expulsos do seu próprio lar.

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